A matéria abaixo foi extraída da Revista Marie Claire.
Por Depoimento a Letícia González
“Uma das psicólogas me disse que ele era retardado. Outra, mimado”
A
professora Anita Brito ouviu os médicos afirmarem que seu filho jamais
voltaria a falar. Diagnosticado como autista, o menino ficou mais de um
ano sem se expressar. Com uma rotina caseira de estímulos diários, Anita
conseguiu trazer o filho de volta. Hoje, Nicolas tem 13 anos, lê,
escreve, conversa e frequenta um colégio regular.
“Nicolas nasceu
sem emitir nenhum som. O parto foi difícil, depois de um longo dia de
contrações que terminou com uma cesárea. Assim que puxaram o bebê, ele
não chorou. Tiveram de levá-lo para longe de mim, dar-lhe oxigênio para,
só então, trazê-lo de volta. Quando o peguei no colo, ele chorava aos
gritos. Foi então que comecei a falar baixinho e dizer a ele que eu era
sua mãe, até que se acalmou. Foi a nossa
primeira conversa.
Nicolas se destacava dos outros recém-nascidos da maternidade pelo
tamanho — havia nascido com 4,140 kg e 56 cm — e era um bebê lindo. Já
na nossa casa em Jandira, no interior de São Paulo, arrancava elogios
das visitas, que diziam: ‘Como é quietinho’.
Depois dos primeiros
meses, essa característica começou a me preocupar. Nicolas tinha de ser
alimentado de três em três horas, mas nunca chorava à noite para mamar.
Eu é que tinha de acordá-lo. Também nunca tinha cólicas e ficava em
silêncio no berço por horas, olhando para o teto. Quando tinha febre ou
dor, respirava com dificuldade e essa era a única maneira de saber que
estava doente. Um dia, quando ele tinha 4 meses, eu o coloquei no berço,
liguei uma música e comecei a arrumar o quarto. Como tinha o hábito de
conversar com ele, fui falando e, sem pensar, me peguei dizendo ‘Você
não dá trabalho mesmo, hein, filho? Será que há algo errado?’. Foi a
primeira vez que cogitei a hipótese de ele ter um problema.
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Aos
6 meses, Nicolas olhou para mim e disse sua primeira palavra: ‘Tata’.
Foi estranho o jeito que pronunciou as sílabas. Parecia correto demais.
Achei que novas palavras viriam em seguida, como ‘mamãe’, ‘papai’, mas
ele só voltou a falar no ano seguinte. Aos 9 meses, aprendeu a andar.
Esse sinal de desenvolvimento, no entanto, contrastava com a sua falta
de reação a estímulos: não respondia a barulhos — a menos que fossem
fortes e inesperados, o que o fazia chorar muito —, não dava atenção a
pessoas que falavam com ele — para agonia das avós — e nem se mexia
quando ganhava um brinquedo novo. Isso me levou a buscar na internet
informações sobre autismo.
Ele era pequeno demais para mostrar os sintomas clássicos, mas mesmo
assim mencionei o assunto com meu marido, Alexsander, e depois com a
pediatra. Alex me chamou de doida e a médica, de ‘mãe de primeira
viagem’. Para reforçar, disse: ‘Seu filho é o bebê mais lindo que já vi,
fique tranquila’. Aquilo não me acalmou, mas me fez pensar que talvez
eu estivesse exagerando. Naquela noite, além do autismo, pesquisei
também sobre uma síndrome que faz as mães fingirem que os filhos estão
doentes para chamar a atenção para si. Mas eu não me via nas descrições.
O que via, a cada noite de insônia passada em frente ao computador,
eram semelhanças entre as atitudes de Nicolas e o autismo.
Crianças
autistas podem ter pouca ou nenhuma interação com o mundo à sua volta,
costumam ter fixação por assuntos específicos, têm raciocínio lógico
(mas, muita vezes, inflexível) e parecem escutar apenas quando algo lhes
interessa. Não há uma causa definida para a doença, mas a influência
genética atualmente já é comprovada por estudos e aceita pelos médicos.
Com 1 ano, Nicolas seguia regras sem contestá-las e aprendia com
facilidade a diferença entre o certo e o errado. Com 1 ano e meio,
expliquei a ele uma única vez como se usava o banheiro e, a partir desse
dia, ele nunca mais usou fraldas. Outra coisa que ficou clara na época
foi a sua paixão por objetos que giram. Ele ia sozinho até a lavanderia
para assistir ao ciclo da máquina de lavar e, como também adorava o
ventilador, costumava sentar-se atrás dele — eu o havia proibido de
ficar de frente para o vento e ele nunca desobedecia. Quanto à fala,
começou repetindo frases de desenhos animados. Ele não criava frases
próprias e nem respondia às conversas. Tanto que minha mãe chegou a
suspeitar que fosse surdo. Um dia, quando ela foi nos visitar, fiz o
teste e falei baixinho: ‘Nicolas, olha para cá agora senão vou ficar
chateada’. Ele, que estava brincando bem afastado de nós, largou o
brinquedo e olhou.
Quando Nicolas completou 2 anos e meio, decidi
levá-lo a uma psicóloga. Em quatro sessões, ela o diagnosticou como
retardado mental e disse que jamais frequentaria a escola. Discordei,
pois, em casa, ele agia com esperteza, só que do seu jeito. Ela tentou
me consolar: ‘Sei que é difícil ouvir isso, você vai entrar em negação’.
Depois disso, voltei a abordar o assunto com a pediatra, mas ela
insistia que ele era perfeitamente normal. Troquei de médico e ouvi a
mesma coisa. Quando meu filho já tinha 3 anos, tentei uma segunda
psicóloga. Dessa vez foi pior. Nicolas, dizia, era mimado. ‘Quando vocês
pararem de superprotegê-lo, ele vai se desenvolver’. Tentamos colocar
Nicolas na escolinha, mas ele chorava do momento em que o deixávamos à
hora da saída.
O
diagnóstico definitivo só viria quase um ano depois, infelizmente, por
causa de uma doença. Aos 3 anos e 8 meses, Nicolas desenvolveu uma
inflamação nos vasos sanguíneos chamada Púrpura de Henoch-Schönlein,
que pode levar à morte. Numa noite, descobrimos um hematoma que
cobria quase toda sua nádega e piorava de hora em hora. Eu perguntava
sobre tombos, batidas, mas não conseguia arrancar dele nem um ‘sim’ ou
‘não’, suas respostas habituais. No consultório, assim que o médico o
apalpou, Nicolas começou a gritar: ‘Ai meu Deus, que dor!’, com a
mãozinha apoiada sobre a barriga. Houve correria na clínica quando o
pediatra, que estava calmo até aquele instante, ordenou a uma das
enfermeiras: ‘Corre e prepara 20 ml de …’. Nessa hora, não escutei
mais nada. Segurei a mão de Nicolas e tentei consolá-lo, mas, na
verdade, pensava também em mim. Tive uma infância difícil numa casa com
seis irmãos, e só consegui sair da pobreza depois de trabalhar e
estudar muito. Naquela época, eu e meu marido cuidávamos de nossa
escola de inglês juntos e havíamos chegado a um patamar confortável
de vida. Aquela era a fase mais feliz da minha vida e a crise me fez
ter medo de perder tudo.
“Depois de um ano sem fazer contato visual, meu filho me olhou.”
Por
causa da dor, Nicolas foi sedado. Ele despertou algumas horas depois,
mas já estava irreconhecível. Seu rosto não tinha expressão, seus olhos
não se cruzavam com os meus e ele estava mudo. Quando eu o pegava no
colo, ele não se encaixava em mim, era como um peso morto. Nicolas
sempre foi diferente dos demais, mas tínhamos uma conexão. Naquele dia,
no entanto, ele parecia vazio. Pensar que não havia ninguém dentro
daquele corpinho me fez ter vontade de morrer. Voltei para casa em luto,
com a sensação de ter perdido um filho. Nessa época, passei a dormir
cerca de quatro horas por noite e, quando conseguia adormecer, tinha
pesadelos. Em um deles, Nicolas ia correndo para bem longe de mim e eu
tentava alcançá-lo. Em outro, ele parava ao meu lado num jardim e
gritava ‘Mamãe!’, mas eu não o ouvia.
Iniciamos uma nova maratona
médica e, por causa do tempo que as visitas tomavam, decidimos que meu
marido pararia de trabalhar. Alexsander, então, já dividia minha
suspeita — a essa altura uma certeza — de que nosso pequeno fosse
autista, mas por tristeza e cansaço, paramos de falar antes de os
médicos darem um parecer. Tudo mudou no dia em que entramos no
consultório de uma psiquiatra e, com poucos minutos de observação, ela
disse: ‘Vocês já ouviram falar em autismo?’. ‘Sim’, respondemos em coro.
‘Me falem sobre o Nicolas’. E isso foi a melhor coisa que nos
aconteceu.
Fomos encaminhados a um hospital em São Paulo pioneiro
na área e ali tivemos o diagnóstico definitivo. É estranho falar em
alívio quando alguém confirma que seu filho tem um problema sério, mas
foi o que senti. Finalmente, três anos depois das minhas primeiras
suspeitas, eu poderia tratá-lo com propriedade. Saímos do hospital
confiantes de que, agora, a medicina nos ajudaria.
Mas a
experiência com os psiquiatras foi frustrante, pois eles não se
interessavam pela rotina do Nicolas. Apenas se limitavam a fazer
perguntas sobre suas crises de ansiedade e receitar remédios. Nicolas se
balançava, sacudia as mãos e às vezes mordia a parte interna da boca
até sangrar, por isso a indicação de medicá-lo. Essa época foi difícil,
porque os especialistas nos diziam que a criança autista vive em um
mundo à parte e a família deve apenas deixá-lo mais confortável.
Eles
não viam relação entre a crise de Púrpura e o mutismo dele, apenas
diziam que era normal um autista não se comunicar. Eu ouvia isso e não
aceitava a ideia de nunca mais ouvir a voz de Nicolas. Meu marido também
sofria com a situação.
Em uma das nossas primeiras visitas ao
hospital, Alexsander ficou tão assustado que apertou a minha mão até
machucar. Enquanto esperávamos para ser atendidos, conversei com uma das
mães na sala. Ela era bonita, bem vestida e acompanhava seu filho de 16
anos, portador de Síndrome de Asperger, uma das variantes do autismo. O
garoto era espontâneo e logo começou a falar sobre carros, sua paixão.
Vendo mãe e filho interagindo com tanto carinho, desejei isso para o
futuro de Nicolas, que vivia em total silêncio. Foi então que veio o
choque. Em um momento da conversa, ela me contou que o marido não havia
suportado a pressão da doença e havia se suicidado alguns anos antes.
Meu coração quase parou quando olhei para meu próprio marido, nervoso
naquela sala, sem saber se Nicolas voltaria a se comunicar.
Nosso
plano foi insistir nos estímulos, de todos os tipos. Eu tirava duas
horas do dia para tentar entrar nas brincadeiras de Nicolas, falar sobre
coisas que ele conhecia e gostava, chamar o seu olhar para o meu. Foram
meses difíceis, porque eu não tinha nenhuma resposta da parte dele. Ao
mesmo tempo, os profissionais que consultávamos nos davam perspectivas
deprimentes. Enquanto uns diziam que Nicolas não era autista, outros
diziam que ele era e não havia nada a fazer — a não ser medicar sua
ansiedade. Eu lia estudos conduzidos nos Estados Unidos e entendia que o
autismo tem muitas questões sem respostas, mas que ‘nada’ não era uma
boa opção de tratamento.
Quando
ele tinha 4 anos e meio, tive a ideia de levá-lo a um carrossel, coisa
que ele adorava quando era menor. Comprei a ficha, coloquei Nicolas em
um dos cavalinhos e fui para o lado de fora vê-lo girar. Depois da
primeira volta, surpresa: Nicolas me olhou de relance, meio de lado, e
levantou o cantinho dos lábios num quase sorriso. Meu coração pulou de
alegria. Finalmente uma reação! Meu filho me olhava depois de um ano de
isolamento. E continuou me olhando, meio de lado, meio sorrindo, a cada
volta que dava. Quando o brinquedo parou, corri para comprar outra ficha
e pedi para subir com ele no carrossel. Fiquei ao lado dele falando no
seu ouvido, dizia que sentia sua falta, que gostaria de ver um filme com
ele quando chegássemos em casa. Voltamos ao carrossel no dia seguinte e
também no fim de semana, dessa vez com o meu marido, que na época
estava de volta ao trabalho. Quando, na primeira volta, Nicolas nos
olhou de cima do seu cavalinho, Alex disse: ‘Ele vai voltar, amor’.
Choramos juntos.
“Ele fala pausado e ama viodeogames seu preferido é o Mario Bros.”
Em
menos de um ano, Nicolas estava falando novamente. Acho que, por algum
bloqueio, não consigo lembrar o dia exato em que ele disse sua primeira
palavra. Às vezes recebíamos apenas um ‘sim’ ou ‘não’ com a cabeça, mas
era um começo. Com o tempo, ele voltou a repetir frases de filmes e se
comunicava por meio delas. Também usava algumas expressões que só nós
entendíamos, então fazíamos a ponte entre ele e o resto da família e os
amigos. Com algumas adaptações, o convívio foi se tornando possível de
novo. Quando ele tinha quase 6 anos, conseguimos uma bolsa para uma
escola especializada em autismo em São Paulo, e os avanços foram
incríveis. Já no primeiro dia de escola, Nicolas aprendeu a se vestir
sozinho. Durante seis meses, frequentou duas escolas: a especial e uma
regular, onde fez adaptação para uma sala do 1o ano. Meu marido
dirigia com ele até a capital de manhã, às vezes enfrentando duas horas
de trânsito, aguardava a aula terminar e voltava com ele para Jandira,
onde ele estudava à tarde.
Nesses primeiros anos de escolarização,
detalhes banais fizeram a diferença. O sinal da escola, por exemplo,
era insuportável para Nicolas. O tumulto da cantina e a dificuldade de
algumas crianças em lidar com um colega diferente também. Então,
escolhemos uma instituição que não tocasse o sinal a cada período,
combinamos com a dona da cantina que ele pegasse seu lanche por uma
porta lateral e eu mesma fiz uma marcação cerrada em cima do bullying,
conversando com professoras e alunos. Dessa forma, ele completou o 1o
ano e conseguiu seguir o currículo comum.
Por ter o raciocínio
linear e muitas vezes ser inflexível, Nicolas se recusa a fazer dever
de casa, por exemplo. Ele diz que ‘a escola é para estudar, e a casa
para descansar’. Então, as professoras passam os deveres na escola
mesmo, e ele os faz antes de voltar para casa. Essa maneira de pensar já
rendeu situações engraçadas, como a vez em que ele deixou vários
exercícios de matemática em branco porque o livro trazia a pergunta
‘Você aceita um desafio?’. Ele respondeu ‘Não’ e deu a tarefa por
acabada.
Com 8 anos de idade, as frases repetidas de filmes deram
lugar aos nossos primeiros diálogos, com perguntas, respostas e
réplicas. Aos 10 anos, teve a sua fase dos porquês. E hoje, aos 13 e no
8o ano, estamos treinando em casa como expressar emoções e ser
simpático com os outros, para evitar os ‘sincericídios’ naturais dele,
como dizer que odiou a comida. Quem conversa com ele percebe a
diferença em relação às outras crianças. Ele fala pausado, raramente
começa uma conversa por conta própria e tem um sentido muito rígido do
que é certo e errado. Se alguém fala palavrão e ele quer comentar o
caso, repete a história, mas diz ‘palavrão’ no lugar de cada expressão
grosseira. Ele balança as mãos, anda pela casa sem direção e exige que
as pessoas cumpram todas as suas promessas, mesmo as mais banais. Mas
conseguimos muitos progressos. Tanto que hoje ele dá palestras em
escolas e em grupos de estudos explicando como vê o mundo.
No ano
que vem, Nicolas quer paquerar. Depois, quem sabe, arranjar uma
namorada. Há dois anos, ele aprendeu a dividir suas coisas com o novo
irmão, Guilherme, um sobrinho de 15 anos, que adotamos depois que minha
irmã morreu. Ainda é cedo para dizer se ele vai conseguir terminar o
ensino médio e fazer vestibular, mas Nicolas adora videogame —
especialmente os jogos do Mario Bros. Ele até cita as datas de
lançamento com precisão enciclopédica — e diz que gostaria de seguir uma
carreira na área de games. Nesses mais de dez anos de luta, percebi que
o Brasil avançou no diagnóstico e no tratamento do autismo. No campo
pessoal, vi meu esforço recompensado. A história dele me inspira tanto
que decidi escrever um livro, Meu filho ERA autista, publicado de
forma independente no início deste ano.
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