quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Autismo (primeira parte)

José Salomão Schwartzman é neuropediatra. Formado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, especializou-se em Neurologia Infantil no Hospital for Sick Children, em Londres, e é professor titular de pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Há crianças que parece não aprenderem a reconhecer os códigos que regem a comunicação humana. Alheias à presença dos outros, encerradas num universo próprio e inatingível para todos que as cercam, apresentam padrões restritos e repetitivos de comportamento. Essa tríade de sintomas – dificuldade de interação social, de comunicação e repetição de comportamentos padronizados – caracteriza um transtorno do desenvolvimento conhecido como autismo.
O médico austríaco Leo Kanner usou essa palavra em 1943 para descrever uma série de sintomas que observava em alguns de seus pacientes. Com o passar dos anos, porém, ficou provado que essas crianças apresentavam apenas uma das manifestações de autismo. Na verdade, as dificuldades do autista variam em grau e intensidade e o comprometimento pode ser muito grave e estar associado à deficiência mental, ou tão leve que o portador do transtorno consegue levar uma vida próxima do normal.
Apesar de autismo não ter cura, quanto antes for diagnosticado, melhor. Crianças convenientemente tratadas podem desenvolver habilidades fundamentais para sua reabilitação. O problema é que, muitas vezes, os pais se recusam a admitir que o filho tem algumas características que requerem atenção especial e não procuram ajuda.
No Brasil, existe a AMA – Associação Amigos do Autista – (www.ama.org.br) que presta assistência a autistas.
CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Drauzio – Você poderia caracterizar o que se entende por autismo?
José Salomão Schwartzman – Na verdade, o que se chama de autismo nada mais é do que um tipo de comportamento que se caracteriza por três aspectos fundamentais. Primeiro: são crianças que parecem não tomar consciência da presença do outro como pessoa. Segundo: apresentam muita dificuldade de comunicação. Não é que não falem, não conseguem estabelecer um canal de comunicação eficiente. Terceiro: têm um padrão de comportamento muito restrito e repetitivo. Atualmente, qualquer indivíduo que apresente esses sintomas, em maior ou menor grau, é caracterizado como autista.
Como se vê, o conceito de autismo é muito amplo. Costumo compará-lo com o de deficiência mental, outro conjunto de sinais e sintomas presentes numa série imensa de pessoas.
Drauzio – Como vocês classificam o autismo?
José Salomão Schwartzman – Atualmente, costuma-se dizer que não há autismo. Existe um espectro de desordens autísticas, em que aparecem as mesmas dificuldades em graus de comprometimento variáveis. Há o indivíduo portador das características citadas em grande proporção e com deficiência mental grave; o grupo com o tipo de autismo descrito pelo médico austríaco Leo Kanner que tem comprometimento moderado e os indivíduos com a Síndrome de Asperger (Hans Asperger foi o médico que a descreveu), que são autistas com linguagem e intelecto preservados.
Drauzio – Você poderia dar um exemplo de autista em cada grupo?
José Salomão Schwartzman – Exemplo do primeiro grupo é o autista grave, aquele que aparece em propagandas das instituições que cuidam dessas pessoas. São crianças isoladas, que não falam e repetem movimentos estereotipados permanentemente, ou ficam girando em torno de si mesmas. Como não são sensíveis à comunicação, não respondem quando se fala com elas, não interagem com o outro e têm, em geral, deficiência mental importante.
Ao segundo grupo pertencem os autistas que chamamos de clássicos. Esses falam, mas não se comunicam. São capazes de repetir fora do contexto uma frase inteira que ouviram num programa de televisão na noite anterior. No entanto, se lhe perguntarmos quantos anos têm ou qual é o seu nome, não respondem. Isso mostra que ouvem e podem falar, mas não usam a fala com ferramenta de comunicação. Esses têm também dificuldade de compreensão. Embora possam entender enunciados simples, apreendem apenas o sentido literal das palavras. Não compreendem as metáforas nem o duplo sentido. Se você disser “muito bem”, não são capazes de perceber que, na língua portuguesa, essa expressão pode significar tanto “muito bem” quanto “muito mal”. Autistas clássicos são voltados para si mesmos e têm ligação muito pobre com o ambiente. Não olham nos olhos dos outros, não entendem pistas sociais.
No terceiro grupo, estão os portadores da Síndrome de Asperger, que apresentam as mesmas dificuldades dos outros, mas numa medida bem reduzida. São verbais e inteligentes. Tão inteligentes que chegam a ser confundidos com gênios, porque são imbatíveis nas áreas do conhecimento em que se especializam. Vi na televisão uma criança portadora dessa síndrome que costuma ser apresentada como uma das maiores autoridades mundiais em animais pré-históricos. O garoto sabe tudo sobre dinossauros. De onde vieram, o tipo de DNA, o que comiam, onde viveram. Entretanto, se lhe fizermos uma pergunta simples – Quantas pessoas vivem na sua casa? -, ele se comporta como se estivéssemos falando grego.
Estabelecer a diferença entre superdotados e portadores da síndrome de Asperger em crianças pequenas é quase impossível. Há um menino em Manaus que sabe de cor o mapa cartográfico da cidade. Desenha todas as ruas, coloca o nome das lojas e o número dos telefones, mas não consegue ser alfabetizado na escola.
 Drauzio – Não dá para imaginar como uma pessoa é capaz de decorar o mapa cartográfico de uma cidade ou até mesmo uma lista telefônica inteira e não é capaz de interpretar conhecimentos mínimos como seu nome e o número de pessoas que moram em sua casa.
José Salomão Schwartzman – Eu acredito que a pessoa normal não enxerga com os olhos. Registra a imagem nos olhos, mas é seu cérebro que processa a informação. Nos autistas com síndrome de Asperger, a visão é fotográfica. Eles veem o que a retina capta. Existe um rapaz na Inglaterra, com cerca de trinta anos, que é considerado um dos maiores desenhistas contemporâneos. O neurologista inglês Oliver Sacks, autor de vários livros a respeito de autismo, levou-o a passear pelo mundo. Depois que visita uma cidade, ele é capaz de desenhar os edifícios respeitando as proporções e reproduzindo todos os detalhes com precisão. Esse moço faz uma coisa impossível para qualquer um de nós. Se você e eu descrevermos o mesmo objeto, certamente iremos descrever duas coisas diferentes, porque cada um de nós o enxergou a seu modo. Ele não. Reproduz o prédio exatamente como é.
CAUSAS
Drauzio – Você não acha estranho existir uma patologia com classificação de espectro tão amplo, que abrange pessoas com incapacidade total de comunicação e outras com sinais de genialidade?
José Salomão Schwartzman – Esse é o problema. Quando Kanner descreveu o autismo em 1943, achou que estava descrevendo uma doença específica que não fugia do quadro clássico que os onze pacientes estudados apresentavam. O fato é que, com o passar do tempo, fomos vendo que não era uma doença específica, nem ocorria por culpa da mãe, porque era essa a visão que se tinha naquela época e, por incrível que pareça, persiste até hoje em alguns lugares.
Em outras palavras: por conta da maternagem inadequada, a criança normal tornava-se autista. Tanto era assim que ainda há gente dizendo que o autismo é causado por um ambiente problemático e propõe terapias psicanalíticas como tratamento.
Entretanto, à medida que se foi conhecendo melhor essa patologia, o conceito de autismo ampliou-se de tal forma que cabe uma comparação com a deficiência mental, primeiramente descrita como um quadro clássico, típico de alguns pacientes, e depois como problema que compreende uma categoria enorme de doenças.
Na verdade, não é exagero dizer que autismo não é uma doença; é um capítulo da neuropediatria.
Drauzio – Existem causas para o autismo?
José Salomão Schwartzman – Nós nunca vamos conhecer a causa do autismo, porque a cada momento estamos descobrindo novas possibilidades. Eu poderia elencar 20, 30, 40 condições diferentes que podem cursar com autismo. A síndrome de Down, a síndrome do X-Frágil e uma série de outras doenças podem cursar o autismo. Da mesma forma, a síndrome fetal alcoólica provocada pela ingestão de álcool durante a gravidez é uma das causas frequentes de deficiência mental e autismo.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Crianças autistas nascem, choram, alimentam-se normalmente. Em que fase da vida aparecem as primeiras manifestações da doença?
 José Salomão Schwartzman – Depende muito da gravidade do comprometimento. Vamos pegar o exemplo do autista clássico. Às vezes, a mãe conta que, desde que saiu da maternidade, esse filho é diferente dos irmãos. Não olha para ela, não quer pegar o peito, não se aninha no colo. No entanto, frequentemente, por não conhecer a doença, ela acha que esse é o jeito, é o temperamento daquela criança.
Existem filmes provando que uma criança normal com cinco horas de vida já é capaz de imitar uma expressão fisionômica. Se estiver bem alimentada e num ambiente tranquilo e mostrarmos a língua, ela nos mostrará a língua também. A criança autista nunca faria isso. Perceber essa diferença, porém, depende muito dos olhos de quem está observando. Hoje, se fala muito sobre diagnóstico precoce de autismo. Ami Klin, psiquiatra e neurocientista brasileiro que estuda muito o problema e dirige o centro de pesquisa sobre autismo da Universidade de Yale, defende o diagnóstico em bebês. É obvio que é impossível fechar o diagnóstico de autismo numa criança de seis, oito meses. Não se fecha, mas levanta-se a suspeita, o que permite adotar uma conduta terapêutica até certo ponto corretiva.
Drauzio – Sua grande experiência clínica no acompanhamento desses pacientes mostra que os pais começam a perceber o problema quando o filho tem que idade?
José Salomão Schwartzman – Com três anos. Essa é a fase em que já esperaram tempo suficiente para a criança falar, para comunicar-se de alguma forma. Entretanto, quando se levanta a história do paciente, em todos os casos, surgem indícios importantes de que já havia algum distúrbio no desenvolvimento dessa criança que não foi corretamente considerado.
Se os pais dos bastante afetados procuram auxílio quando o filho tem entre dois e quatro anos, autistas poucos afetados podem descobrir que têm a doença depois de adultos. Tenho casos de pais que souberam ser portadores da síndrome de Asperger, que é o autismo de bom rendimento, quando o diagnóstico foi feito no filho.
PREVALÊNCIA
Drauzio – Existe concentração de casos de autismo em certas famílias?
José Salomão Schwartzman – Existe um fator genético indiscutível. Nos casais que já tiveram filhos autistas, a probabilidade de ter mais um é de cerca de 2%. Parece pouco, mas significa um risco de 50 a 100 vezes maior do que na população em geral.
Drauzio – Qual é a prevalência do autismo na população?
José Salomão Schwartzman – Admite-se que a prevalência não só do autismo clássico, mas de todas as condições do espectro autista seja de um para mil. Na Califórnia (EUA), os últimos relatos falam de um caso para cada 150 crianças, o que não é possível. Talvez, o conceito deles seja tão amplo, que daqui a pouco todos nós seremos considerados um pouco autistas.
 Drauzio – Qual é a vantagem do diagnóstico precoce de uma doença que pode ter uma evolução que vai desde o retardo mental e a impossibilidade de aprender até a genialidade se o conhecimento for dirigido?
 José Salomão Schwartzman – Se tenho uma criança que necessita de mais estímulo para tentar estabelecer uma relação com a mãe, com o pai, com os irmãos, o aconselhamento familiar precoce permite ensinar técnicas que tentem facilitar essa comunicação. Além disso, existem medicamentos que podem ser indicados em determinadas situações.
Não há cura para o autismo, mas acontece que algumas pessoas têm melhora tão grande com o tratamento que podem levar vida independente. Tenho autistas adultos, casados, com filhos, que são excepcionalmente bem dotados em algumas áreas do conhecimento e tomaram consciência da própria doença aos 40 anos. Esses tiveram um percurso feliz, porque o distúrbio evoluiu de forma adequada e, em grande medida, tiveram famílias e escolas que souberam trabalhar suas dificuldades.
REAÇÃO DOS PAIS
Drauzio – Como reagem os pais ao saber que têm um filho com autismo?
José Salomão Schwartzman – Minha sensação é que das condições que cursam com os distúrbios de desenvolvimento, o autismo talvez seja a mais difícil de conviver. Como é possível ter uma relação de afeto com alguém que não corresponde a nenhuma tentativa de aproximação, que não se pode abraçar nem dar um beijo nem ensinar a falar tchau?
Na família de um autista, não é só a criança que está doente. A família inteira fica seriamente comprometida. Por isso, quando observavam a dinâmica familiar alterada, os autores antigos chegavam à conclusão de que pais tão ruins assim, que não se comunicavam com os filhos, desencadeavam esse tipo de comprometimento na criança.
Drauzio – Eles consideravam a consequência, como causa.
José Salomão Schwartzman  – Faziam isso, quando, na verdade, é a criança doente que, desde o começo, não permite uma relação parental adequada. Entretanto, tudo vai depender muito de quem são os pais e de como reagem. Há os que, apesar da dificuldade de entrar em contato com a criança, tentam identificar o que ela tem de anormal. Entretanto, é frequente encontrar famílias que não querem ver a dificuldade do filho. Muitas se negam a perceber que o filho adolescente, durante a vida toda, teve um comportamento fora do habitual e acabam inventando explicações para não admitir que ele é portador de uma condição grave como o autismo. Isso atrasa demais a possibilidade de ajudar a criança.
TRATAMENTO
Drauzio – Os autistas devem frequentar escolas comuns?
José Salomão Schwartzman – Depende do grau de comprometimento. Atualmente, no Brasil, a política é tentar a inclusão dos indivíduos com deficiência em escolas regulares. Isso vale para algumas pessoas e para algumas escolas.
Pessoalmente, não gosto de discutir a inclusão como algo filosófico ou determinado pelo MEC. Acho que se deve analisar caso a caso e levar em conta, antes de mais nada, o local onde estarão melhor os deficientes. Tenho dois autistas adolescentes cursando a USP. Não têm vida social intensa, mas estão vivendo de forma bastante adequada. Se você conversar com eles, perceberá algo de estranho em seu comportamento, mas talvez a maneira de agir desses estudantes não se distancie muito da de vários conhecidos esquisitos que temos.
Indivíduos como eles podem e devem cursar escolas regulares. A questão é quando a criança não fala, não se comunica e apresenta movimentos estereotipados. Colocada dentro de uma classe regular, não só será excluída do grupo, como deixará de beneficiar-se com a aplicação de técnicas pedagógicas que dão certo com os autistas. Por exemplo, a técnica Teacch que é muito usada nos Estados Unidos e baseia-se na modificação do comportamento.
Na verdade, ninguém pode dizer que o melhor tratamento para crianças autistas é este ou aquele. Cada pessoa exige uma abordagem individualizada de acordo com as características de suas dificuldades.
Drauzio – Existiria uma linha mestra a ser seguida no tratamento dos autistas?
José Salomão Schwartzman – Não existe. Se a criança apresenta prejuízo da comunicação, o atendimento tem de ser precoce e é preciso utilizar todos os métodos disponíveis para estabelecer algum tipo de comunicação. Se não conseguir fazê-lo verbalmente, que seja por qualquer outro modo. Há quem ensine a linguagem de sinais para os autistas. Outros usam o computador. O importante é convencer a família de que o fundamental é estabelecer uma possibilidade de comunicação entre o autista e o mundo, não importa qual seja.
Os prejuízos de linguagem dos autistas verbais, sua dificuldade de entender as metáforas e o duplo sentido, podem ser superados pela cognição. Um dos rapazes que estão estudando na USP e foram aprovados no vestibular, é ótimo aluno e provavelmente vai ser ótimo professor da disciplina que escolheu. Outro dia, ele me falou:  “Salomão, ter síndrome de Asperger é uma coisa complicada”, e pediu para mãe me contar o que lhe havia acontecido. Desde que ele era pequenininho, antes de sair para o trabalho, a mãe deixava um ovo cozido e descascado para o filho comer no café da manhã.  Um dia, porém, ela não seguiu esse ritual completamente e, quando voltou para casa, encontrou o rapaz, que deveria estar na faculdade, sentado à mesa, olhando para o ovo. “Você perdeu hora?”, perguntou. “Não, mãe, você esqueceu de descascar o ovo”. Como nunca tinha visto alguém descascar um ovo, foi incapaz de fazê-lo.
De fato, fica difícil de entender como um rapaz que passou no vestibular, é excelente aluno, inteligente, é incapaz de enfrentar uma situação nova tão simples quanto descascar um ovo.
Drauzio – Não só não descascou o ovo, como ficou paralisado…
José Salomão Schwartzman – Absolutamente paralisado. E ele conta outras experiências iguais. Um dia, a mãe lhe pediu para pegar um objeto no porta-malas do carro. Como demorasse muito para voltar, foram atrás dele para ver o que estava acontecendo. Encontraram o rapaz no estacionamento do restaurante, com a chave do carro na mão, olhando para o porta-malas sem saber como abrir, pois nunca ninguém lhe tinha ensinado a enfiar a chave na fechadura. Isso prova a necessidade e importância de adotar atitudes pedagógicas. É preciso ensinar esses indivíduos a fazerem determinadas coisas que presumiríamos serem capazes de aprender sozinhos.
Drauzio – É visível o progresso dessas crianças quando tratadas adequadamente?
 José Salomão Schwartzman – Em algumas, sim. O problema é que quanto maior a deficiência mental, menor a possibilidade de ganhos significativos. No entanto, como nas crianças pequenas os dados para diagnóstico não são claros, empenho-me no tratamento, embora as respostas possam ser muito diferentes. Há casos que evoluem tão bem, que se usa a expressão “saiu do quadro autístico”, que não é adequada. Autismo é um distúrbio incurável. Se houve reversão do quadro, a pessoa não era autista.
Tenho muitos pacientes com autismo que sararam, mas nunca vou apresentá-los num congresso, porque foram classificados como autistas por erro de diagnóstico. Por isso, fechar o diagnóstico antes do cinco anos é complicado. O médico pode levantar a hipótese, mas o consenso é que o diagnóstico de certeza só seja feito por volta dos quatro anos e meio de idade.

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