sábado, 27 de julho de 2013

Can Game é proposta de software multidisciplinar para crianças autistas

Por Eraldo Guerra
Capa do Jogo Can GameOlá caros leitores, sou Eraldo Guerra, de Recife (PE). Atualmente sou educador da Escola Técnica Estadual Professor Agamemnom Magalhães (ETEPAM) e mestrando no Centro de Estudos de Sistemas Avançados do Recife. Foi a partir do mestrado que surgiu minha ligação com o autismo, quando precisava definir uma linha de pesquisa para desenvolver um projeto ou estudo de caso que fosse minha tese de defesa. Assim iniciei minha busca por um tema que tivesse uma importância para mim e uma relevância para sociedade, uma vez que enquanto educador da ETEPAM priorizava desenvolver projetos ou atividades com meus alunos, que promovessem um impacto, seja ele social ou ambiental.
O tema autismo veio por um acaso da vida, pois não tenho parentes ou amigos com autismo, sendo esse um dos principais motivos pelo qual, as pessoas buscam conhecer o assunto. Assim, comecei a ler sobre assuntos relacionados à tecnologia social, ao uso da tecnologia como qualidade de vida, além de casos de uso da tecnologia na área da saúde ou educação. De tantas pesquisas e buscas, acabei encontrando um blog que contava a história de uma menina chamada Carly Fleischmann, sua história de vida mexeu demais comigo. Para quem desconhece, em resumo se trata de uma história de superação: ela foi diagnosticada como uma criança com autismo grave e retardo mental severo. Porém ela acabou contrariando todas as expectativas médicas e gerando questionamentos à Ciência ao mostrar uma evolução inesperada.
Carly FleischmannO que mais me comoveu, foi o momento em que li o relato de que Carly, aos 11 anos, sem nunca ter sido ensinada a ler ou escrever, muito menos a usar o computador, conseguiu digitar as palavras DOR e AJUDA, em seguida correu para o banheiro e vomitou. Foi nesse momento que senti, literalmente na pele, que poderia fazer algo por meio da tecnologia, que precisava dedicar meu tempo e esforço para fazer algo que pudesse valer a pena não só para mim como para muitas outras pessoas. Nunca havia me sentido tão motivado e interessado por um assunto como foi o autismo. Passei a ler, investigar, conhecer um pouco sobre as técnicas de tratamentos, sobre os números crescentes do autismo, a ler alguns estudos de casos que pudessem de alguma forma fornecer informações suficiente para me nortear como fazer e o quê fazer.
Nesse período fui entrando em contato por email com alguns educadores, psicólogo e fonoaudiólogos a fim de esclarecer algumas dúvidas. Sendo essa fase importante para definir quais os requisitos seriam priorizados para a elaboração da arquitetura de um software (programa de computador), sejam eles funcionais (funcionalidades do sistema) ou não funcionais (ligados à qualidade). Tal preocupação se deu ao fato de entender um pouco das características da criança autista e como poderia virtualizar o tratamento. A partir disso, percebi que o ideal deveria ocorrer de forma multidisciplinar de acordo com Carlos A. Gadia (2004). Além disso, outro fator importante descoberto é que o planejamento do tratamento deve ser estruturado de acordo com as fases da vida do paciente. Portanto, com crianças pequenas, a prioridade deveria ser terapia da fala, da interação social/linguagem, educação especial e suporte familiar. Já com adolescentes, os alvos seriam os grupos de habilidades sociais, terapia ocupacional e sexualidade. Com adultos, questões como as opções de moradia e tutela deveriam ser focadas (Aman MG 2005). Sob a ótica da tecnologia, compreendi a importância de seu uso no tratamento do autismo. Segundo Cleonice Alves Bosa, dispositivos de comunicação computadorizados têm sido especialmente projetados para crianças com autismo. Em geral, o foco está em ativar a alternância dos interlocutores e em encorajar a interação. Teclados intercambiáveis, de crescente complexidade, possibilitam que as crianças progridam gradualmente de um teclado com apenas um símbolo para o uso independente de formatos com múltiplos símbolos, que são ajustados de forma personalizada para o ambiente, necessidades ou interesses do indivíduo. Outro fator em favor do uso de computadores é que o material visual é mais bem compreendido e aceito do que o verbal.
A partir dessas informações e outras coletadas, comecei a elaborar a arquitetura do software de forma que pudesse integrar a educação básica, com o desenvolvimento cognitivo social e comunicação. Por meio de intervenções multidisciplinares integradas entre os três tratamentos escolhidos (ABA, PECS e TEACCH). E respeitando a fase da vida da criança como também as características de como o autismo a afeta. Foi elaborado o primeiro planejamento, que adotou o uso da tecnologia do Microsoft Kinect; e para dispositivos móveis, do Windows Phone Seven.
Compreendendo um pouco o porquê da escolha das mesmas, irei explicar e comparar algumas situações ou características do autismo. O Microsoft Kinect usa uma tecnologia que permite ao usuário interagir com o sistema sem uso de controles físicos, utilizando o movimento do corpo para identificar suas solicitações, assim como por comando de voz, além disso, há uma câmera que pode filmar a interação do usuário com o sistema. Qual a importância disso? Sob a minha interpretação, é fundamental para o modelo de tratamento das crianças autista, respeitando algumas características. Estima-se ser mais fácil motivar a criança a interagir com o sistema. Citando algumas dessas características, iremos entender como isso pode funcionar ou interagir:
Característica 1 – Indica necessidade através de gestos – por meio dessa característica o Microsoft Kinect irá reconhecer as necessidades da criança e interagir com ela. Sem a necessidade do uso de um controle ou teclado;
Característica 2 – Habilidade motoras desniveladas – é estimado que por meio da frequência e motivação da criança em interagir com o software, podemos condicionar de uma melhor forma a correção desse desnivelamento motor, uma vez que para o software interagir, o movimento necessita de certa precisão;
Característica 3 – Hiperatividade física marcante – pelo fato do Microsoft Kinect se tratar de uma tecnologia que envolve o movimento corporal, é estimado que seu uso pela criança reduza a hiperatividade física. Uma vez que ela pode despender essa energia utilizando o software;
Característica 4 – Repete palavras sem sentido aparente – o uso dessa característica vem como forma de praticar ou exercitar atividades relacionadas à terapia da fala, que por meio de onomatopeias (imitar um som com um fonema ou palavra; ruídos, gritos, canto de animais, sons da natureza, barulho de máquinas, contribuindo na formação das palavras) ou fricativas (som de consoante que se produz com estreitamento, mas sem contato das partes do tubo vocal, como o "V" e o "F") o software possa ser utilizado por fonoaudiólogos. Para isso o Microsoft kinect, captura o áudio da criança durante a atividade — o que será melhor explicado a seguir.
Além das características já mencionas, o software também visava a atender outras, de forma que facilitasse o processo de tratamento e aprendizado da criança autista. Assim entendeu-se que o software deveria ter um formato de jogo. Pois a questão lúdica educacional seria um importante agente motivador e atenderia a característica presente em algumas crianças que é a resistência a métodos comuns de ensino. Assim o jogo foi elaborado pensando em dois pontos, a personalização de sua interface (cenário do jogo) de forma que a cor que a criança tenha mais afinidade venha a personalizar todo o jogo, como também a escolha de um personagem. Mediante essa ótica, teríamos mais um agente facilitador e a cada novo cenário do jogo, a cor se manteria, evitando mudanças bruscas no cenário ou passar a ideia que mudou a rotina do jogo.  Tal preocupação também se deve ao fato de que uma das características do autismo, é a resistência a mudança de rotina.
Inicialmente foram desenvolvido quatro personagens, para que a criança pudesse escolher o que mais se identificar com ela.  E ele estará presente em toda rotina do jogo, junto com a cor desejada, independente da atividade selecionada ou do planejamento de atividades definido pelo tratamento. A ótica do personagem pode ser também considerada um fator a mais que motive a criança a realizar essa atividade, uma vez que o personagem escolhido pode atender uma das características do autismo, relacionado ao apego inadequado a algum, objeto sendo assim alvo de reforço e estimulo ao uso do software.
O próximo passo era definir a identidade do software, um nome e um logotipo que passe a ideia do que era o projeto e ao mesmo tempo possua uma imagem amigável para a criança se sentir vontade para brincar.  O nome surgiu, devido a uma percepção presente sempre que lia algo relacionado ao autismo, sempre encontrava a palavra impossibilitada, algumas vezes em caráter positivo outras de forma negativa. Talvez pela minha ingenuidade ou por não ser um conhecedor do assunto, sempre acreditei que a pessoa autista no geral não era impossibilitada e que poderia (sim!) ter uma vida com qualidade para ela, seus amigos e familiares. A partir disso surgiu o nome Can Game, com o propósito de passar a ideia ou uma alusão de que pode ("can", em inglês, significa "pode", verbo "poder"), sim podemos! Sendo esse o propósito desse software, propor condições para que a criança possa ter uma melhor qualidade de vida com sua família e amigos. Transmitindo ao mundo o que ela sente!
Para compreender melhor o que seria o software, será apresentado uma visão geral sobre a ótica funcional. A primeira tela do jogo é referente à opção de login, que existe com a finalidade de diferenciar um usuário do outro. Com essa identificação, o material coletado pelo Microsoft Kinect e pela rastreabilidade (registros dos erros e acertos na realização das atividades) são alvos de estudo, contribuindo para o diagnóstico evolutivo da criança e aperfeiçoamento do sistema, de acordo com a especificidade das caracterísicas daquela criança.
A tela a seguir é a de interação, como já mencionado, onde é possível escolher o personagem e a cor tema do jogo, com quatro opções diferentes. Sabendo que a personalização de cenários é algo peculiar a cada criança, que pode estar diretamente ligada à aceitação ou rejeição do jogo, este se tornou um item obrigatório. O Can Game não deve ser utilizado em caráter de obrigação e sim por que a criança gostou de brincar.
Tela inicial de personalização de cor e personagem o qual irá interagir com a criança.

Tela Inicial (home) — Este cenário usa como referência o jogo de tabuleiro, em que o personagem escolhido deve chegar ao seu destino, que normalmente é voltar para casa. Durante o percurso, o personagem se depara com vários animais e objetos, escolhidos pelo fonoaudiólogo; basta clicar e arrastar para dentro do percurso e eles vão interagir com o personagem escolhido pela criança. A escolha pode ser feita pela necessidade de intensificar os exercícios vocais (com foco nas maiores dificuldades da criança) ou seguir a rotina do tratamento. Como o personagem se move pelo cenário, todos os movimentos são feitos com as jogadas realizadas pelo dado, que define a quantidade de casa que o personagem deve andar, podendo ser um artifício para práticas de conhecimento matemático. Ao encontrar com um personagem, ele irá se comunicar, emitindo um som que o representa. O som é repetido três vezes para garantir que a criança compreenda, caso exista necessidade o som pode ser repetido novamente — se o fonoaudiólogo desejar. Passado este processo, a criança repete o som, o qual vai ser capturado pelo Microsoft Kinect (através do SDK Microsoft Speech) — o qual será armazenado e poderá ser posteriormente analisado, contribuindo para o diagnóstico e correção de problemas vocais.

Tela inicial, a qual o fonoaudiólogo utiliza para terapia vocal
Tela Escola (School) – O cenário é composto por atividades educacionais, no qual estimula o estudo da ciências, matemática, além de outras. Exemplificando melhor, no jogo de ciências a criança, por meio do ato de colorir, vai aprendendo noções do corpo humano pintando as partes solicitadas. Tal atividade pode ser um forte instrumento de aprendizado, se for bem utilizado no tratamento. Tendo seu uso em diversas formas, dependendo da criatividade e de sua aplicação pelo profissional responsável.

Tela de ciências, aprender sobre o corpo humano.

No cenário que estimula o aprendizado da matemática, o personagem precisa aprender a somar, dividir, multiplicar e subtrair, de forma que tais interações possam ser relacionadas ao convívio social. Na imagem, o cachorrinho (personagem escolhido) precisa dividir de forma igual com seu amigo os ossos que ele tem (quatro) — estimulando assim uma pratica social. Dessa forma, durante a atividade o ideal é que a mesma prática virtual seja estimulada em uma prática social (real).

Atividade matemática na qual são divididos os ossos entre os personagens.
Tela Adivinhações (Quiz) – Por meio de imagens, a criança identifica a que se refere. Feito isso, ela soletra o nome que identifica a imagem. Essa atividade se assemelha ao jogo de forca, sendo considerada a ordem das letras de forma que complete corretamente o nome que identifica o objeto ou animais. A escolha desses, se deu ao fato que sejam comuns ao ambiente da criança, promovendo assim uma integração do virtual com o real. Exemplificando o cenário, a imagem de um pássaro foi utilizada: a criança identifica e soletra. Cada letra soletrada de forma errada ou na ordem errada, muda seu tom de cor para vermelho, cada letra soletrada na ordem correta vai completando o nome. No fim, o jogo irá emitir um som que o representa, neste caso, o som de um pássaro cantando.

Jogo de adivinhação, o que estimula a comunicação.
Tela Gostar (Like) - Atua como um reforço das atividades presentes no cotidiano da criança, apresentando-as por meio de imagens necessitando organizá-las como uma agenda de atividades. Assim a criança organiza as atividades, sendo feito pelo deslizamento de uma imagem para o local definido, com o uso do Microsoft Kinect. Para isso, a criança precisa inicialmente escolher a atividade que irá realizar ou a que mais gosta, naquele determinado momento. O ideal é que ela seja escolhida ou sugerida de acordo com o horário ou com seu plano de atividades do dia a dia. Assim, o processo de organização de atividades presente no Can Game terá uma relação com o cotidiano da criança.

Tela para escolher qual atividade a criança irá realizar.
Escolhida a atividade, uma nova tela vai surgir com a atividade selecionada, porém dividida em partes menores, sendo necessário agora organizá-la passo a passo. Após a conclusão apropriadamente, o jogo volta ao cenário anterior, confirmando a realização da atividade e permitindo um tempo para que a criança realize-a de forma real.

Atividade do Banho, sendo feita o passo a passo
Tal projeto encontra-se na fase de desenvolvimento, pesquisa e testes na ETEPAM por meio da equipe Life Up Team, composta por alunos e amigos que também acreditam que podemos fazer algo de bom. As imagens presentes do projeto encontram-se em inglês, devido ao fato de termos o apresentado em uma feira internacional de ciência e tecnologia, em Phoenix (Arizona, Estados Unidos).  Além da equipe, contamos com algumas parcerias como uma clínica em Recife, que realiza tratamento para autismo e nos permite a realização de testes, colaborando com informações importantes para a melhoria contínua do projeto; o Centro de Inovação Microsoft que dá todo suporte tecnológico; e a todos os profissionais, que de uma forma ou de outra, contribuem para o sucesso do projeto.
Estou ciente que esse projeto está muito longe de resolver os problemas ligados ao autismo. Como também não tenho pretensão de mudar ou de ir contra pesquisas e tratamentos existentes na área.  Penso e acredito que quero agregar mais valor, motivar novos projetos e pesquisas referentes ao tema. Pois sei que sozinho minha intervenção possa ser muito pequena, mas nem por isso me desanimo. Enquanto eu sentir que preciso, que quero e que posso fazer algo e esse for o meu desejo, o desejo do meu eu coração, estarei dedicando tempo para poder contribuir de alguma forma. Assim espero que por meio desta Revista Autismo possa encontrar pessoas dispostas a ajudar com o projeto, para quem sabe em pouco tempo estar presente na vida da criança autista, atendendo sua expectativa e da família. Em uma continuidade da revista, se houver a possibilidade, prendendo continuar a explicar o projeto, a questão do uso da tecnologia móvel, do site e de projeções futuras para que possa atender as necessidades da criança com autismo.

Estou muito feliz em ter participado dessa edição, deixo meu email para contato, ( eraldo.guerraf@gmail.com ) envio de sugestões de melhoria ou mudanças no software. Uma vez que não sou um especialista em autismo, mas que desejei aprender e compreender de forma que pudesse utilizar meu conhecimento para que fosse aplicado para esse fim. Obrigado!
"Sem um fim social o saber será a maior das futilidades" (Gilberto Freyre)

can-game-eraldo-guerraEraldo Guerra é professor de Empreendedorismo da Escola Técnica Estadual Professor Agamemnom Magalhães (ETEPAM) e mestrando no Centro de Estudos de Sistemas Avançados do Recife.


A equipe Life Up é formada por alunos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e alunos da Escola Técnica Estadual Professor Agamenon Magalhães (Etepam), em Recife. Seu integrantes são: Allan Cleysson de Oliveira Ramos, Thiago Pedrosa Lins, Rodolfo Jose de Oliveira Soares, Luiz Reis Nogueira Neto e Eraldo Guerra Filho (mentor).


O projeto Can Game, é um site, aplicativo para smartphone e também um jogo para notebook e desktop, já recebeu vários prêmios, inclusive internacionais, como a categoria Inovação na Copa do Mundo da Tecnologia promovida pela Microsoft, a Imagine Cup 2013, este ano na Rússia; a categoria Ciências da Computação Brasil na 27ª Mostratec, em 2012; além de vencer o Desafio Intel de Tecnologia 2013, credenciando-o a participar do evento Intel ISEF (International Science and Engineering), em Phoenix (Arizona, EUA).





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