Por Eraldo Guerra
Olá
caros leitores, sou Eraldo Guerra, de Recife (PE). Atualmente sou
educador da Escola Técnica Estadual Professor Agamemnom Magalhães
(ETEPAM) e mestrando no Centro de Estudos de Sistemas Avançados do
Recife. Foi a partir do mestrado que surgiu minha ligação com o autismo,
quando precisava definir uma linha de pesquisa para desenvolver um
projeto ou estudo de caso que fosse minha tese de defesa. Assim iniciei
minha busca por um tema que tivesse uma importância para mim e uma
relevância para sociedade, uma vez que enquanto educador da ETEPAM
priorizava desenvolver projetos ou atividades com meus alunos, que
promovessem um impacto, seja ele social ou ambiental.
O
tema autismo veio por um acaso da vida, pois não tenho parentes ou
amigos com autismo, sendo esse um dos principais motivos pelo qual, as
pessoas buscam conhecer o assunto. Assim, comecei a ler sobre assuntos
relacionados à tecnologia social, ao uso da tecnologia como qualidade de
vida, além de casos de uso da tecnologia na área da saúde ou educação.
De tantas pesquisas e buscas, acabei encontrando um blog que contava a
história de uma menina chamada Carly Fleischmann,
sua história de vida mexeu demais comigo. Para quem desconhece, em
resumo se trata de uma história de superação: ela foi diagnosticada como
uma criança com autismo grave e retardo mental severo. Porém ela acabou
contrariando todas as expectativas médicas e gerando questionamentos à
Ciência ao mostrar uma evolução inesperada.
O
que mais me comoveu, foi o momento em que li o relato de que Carly, aos
11 anos, sem nunca ter sido ensinada a ler ou escrever, muito menos a
usar o computador, conseguiu digitar as palavras DOR e AJUDA, em seguida
correu para o banheiro e vomitou. Foi nesse momento que senti,
literalmente na pele, que poderia fazer algo por meio da tecnologia, que
precisava dedicar meu tempo e esforço para fazer algo que pudesse valer
a pena não só para mim como para muitas outras pessoas. Nunca havia me
sentido tão motivado e interessado por um assunto como foi o autismo.
Passei a ler, investigar, conhecer um pouco sobre as técnicas de
tratamentos, sobre os números crescentes do autismo, a ler alguns
estudos de casos que pudessem de alguma forma fornecer informações
suficiente para me nortear como fazer e o quê fazer.
Nesse
período fui entrando em contato por email com alguns educadores,
psicólogo e fonoaudiólogos a fim de esclarecer algumas dúvidas. Sendo
essa fase importante para definir quais os requisitos seriam priorizados
para a elaboração da arquitetura de um software (programa de
computador), sejam eles funcionais (funcionalidades do sistema) ou não
funcionais (ligados à qualidade). Tal preocupação se deu ao fato de
entender um pouco das características da criança autista e como poderia
virtualizar o tratamento. A partir disso, percebi que o ideal deveria
ocorrer de forma multidisciplinar de acordo com Carlos A. Gadia (2004).
Além disso, outro fator importante descoberto é que o planejamento do
tratamento deve ser estruturado de acordo com as fases da vida do
paciente. Portanto, com crianças pequenas, a prioridade deveria ser
terapia da fala, da interação social/linguagem, educação especial e
suporte familiar. Já com adolescentes, os alvos seriam os grupos de
habilidades sociais, terapia ocupacional e sexualidade. Com adultos,
questões como as opções de moradia e tutela deveriam ser focadas (Aman
MG 2005). Sob a ótica da tecnologia, compreendi a importância de seu uso
no tratamento do autismo. Segundo Cleonice Alves Bosa, dispositivos de
comunicação computadorizados têm sido especialmente projetados para
crianças com autismo. Em geral, o foco está em ativar a alternância dos
interlocutores e em encorajar a interação. Teclados intercambiáveis, de
crescente complexidade, possibilitam que as crianças progridam
gradualmente de um teclado com apenas um símbolo para o uso independente
de formatos com múltiplos símbolos, que são ajustados de forma
personalizada para o ambiente, necessidades ou interesses do indivíduo.
Outro fator em favor do uso de computadores é que o material visual é
mais bem compreendido e aceito do que o verbal.
A
partir dessas informações e outras coletadas, comecei a elaborar a
arquitetura do software de forma que pudesse integrar a educação básica,
com o desenvolvimento cognitivo social e comunicação. Por meio de
intervenções multidisciplinares integradas entre os três tratamentos
escolhidos (ABA, PECS e TEACCH). E respeitando a fase da vida da criança
como também as características de como o autismo a afeta. Foi elaborado
o primeiro planejamento, que adotou o uso da tecnologia do Microsoft
Kinect; e para dispositivos móveis, do Windows Phone Seven.
Compreendendo
um pouco o porquê da escolha das mesmas, irei explicar e comparar
algumas situações ou características do autismo. O Microsoft Kinect usa
uma tecnologia que permite ao usuário interagir com o sistema sem uso de
controles físicos, utilizando o movimento do corpo para identificar
suas solicitações, assim como por comando de voz, além disso, há uma
câmera que pode filmar a interação do usuário com o sistema. Qual a
importância disso? Sob a minha interpretação, é fundamental para o
modelo de tratamento das crianças autista, respeitando algumas
características. Estima-se ser mais fácil motivar a criança a interagir
com o sistema. Citando algumas dessas características, iremos entender
como isso pode funcionar ou interagir:
Característica 1 – Indica necessidade através de gestos
– por meio dessa característica o Microsoft Kinect irá reconhecer as
necessidades da criança e interagir com ela. Sem a necessidade do uso de
um controle ou teclado;
Característica 2 – Habilidade motoras desniveladas
– é estimado que por meio da frequência e motivação da criança em
interagir com o software, podemos condicionar de uma melhor forma a
correção desse desnivelamento motor, uma vez que para o software
interagir, o movimento necessita de certa precisão;
Característica 3 – Hiperatividade física marcante
– pelo fato do Microsoft Kinect se tratar de uma tecnologia que envolve
o movimento corporal, é estimado que seu uso pela criança reduza a
hiperatividade física. Uma vez que ela pode despender essa energia
utilizando o software;
Característica 4 – Repete palavras sem sentido aparente
– o uso dessa característica vem como forma de praticar ou exercitar
atividades relacionadas à terapia da fala, que por meio de onomatopeias
(imitar um som com um fonema ou palavra; ruídos, gritos, canto de
animais, sons da natureza, barulho de máquinas, contribuindo na formação
das palavras) ou fricativas (som de consoante que se produz com
estreitamento, mas sem contato das partes do tubo vocal, como o "V" e o
"F") o software possa ser utilizado por fonoaudiólogos. Para isso o
Microsoft kinect, captura o áudio da criança durante a atividade — o que
será melhor explicado a seguir.
Além
das características já mencionas, o software também visava a atender
outras, de forma que facilitasse o processo de tratamento e aprendizado
da criança autista. Assim entendeu-se que o software deveria ter um
formato de jogo. Pois a questão lúdica educacional seria um importante
agente motivador e atenderia a característica presente em algumas
crianças que é a resistência a métodos comuns de ensino. Assim o jogo
foi elaborado pensando em dois pontos, a personalização de sua interface
(cenário do jogo) de forma que a cor que a criança tenha mais afinidade
venha a personalizar todo o jogo, como também a escolha de um
personagem. Mediante essa ótica, teríamos mais um agente facilitador e a
cada novo cenário do jogo, a cor se manteria, evitando mudanças bruscas
no cenário ou passar a ideia que mudou a rotina do jogo. Tal
preocupação também se deve ao fato de que uma das características do
autismo, é a resistência a mudança de rotina.
Inicialmente
foram desenvolvido quatro personagens, para que a criança pudesse
escolher o que mais se identificar com ela. E ele estará presente em
toda rotina do jogo, junto com a cor desejada, independente da atividade
selecionada ou do planejamento de atividades definido pelo tratamento. A
ótica do personagem pode ser também considerada um fator a mais que
motive a criança a realizar essa atividade, uma vez que o personagem
escolhido pode atender uma das características do autismo, relacionado
ao apego inadequado a algum, objeto sendo assim alvo de reforço e
estimulo ao uso do software.
O
próximo passo era definir a identidade do software, um nome e um
logotipo que passe a ideia do que era o projeto e ao mesmo tempo possua
uma imagem amigável para a criança se sentir vontade para brincar. O
nome surgiu, devido a uma percepção presente sempre que lia algo
relacionado ao autismo, sempre encontrava a palavra impossibilitada,
algumas vezes em caráter positivo outras de forma negativa. Talvez pela
minha ingenuidade ou por não ser um conhecedor do assunto, sempre
acreditei que a pessoa autista no geral não era impossibilitada e que
poderia (sim!) ter uma vida com qualidade para ela, seus amigos e
familiares. A partir disso surgiu o nome Can Game, com o propósito de
passar a ideia ou uma alusão de que pode ("can", em inglês, significa
"pode", verbo "poder"), sim podemos! Sendo esse o propósito desse
software, propor condições para que a criança possa ter uma melhor
qualidade de vida com sua família e amigos. Transmitindo ao mundo o que
ela sente!
Para
compreender melhor o que seria o software, será apresentado uma visão
geral sobre a ótica funcional. A primeira tela do jogo é referente à
opção de login, que existe com a finalidade de diferenciar um usuário do
outro. Com essa identificação, o material coletado pelo Microsoft
Kinect e pela rastreabilidade (registros dos erros e acertos na
realização das atividades) são alvos de estudo, contribuindo para o
diagnóstico evolutivo da criança e aperfeiçoamento do sistema, de acordo
com a especificidade das caracterísicas daquela criança.
A tela a seguir é a de interação, como
já mencionado, onde é possível escolher o personagem e a cor tema do
jogo, com quatro opções diferentes. Sabendo que a personalização de
cenários é algo peculiar a cada criança, que pode estar diretamente
ligada à aceitação ou rejeição do jogo, este se tornou um item
obrigatório. O Can Game não deve ser utilizado em caráter de obrigação e
sim por que a criança gostou de brincar.
Tela Inicial (home)
— Este cenário usa como referência o jogo de tabuleiro, em que o
personagem escolhido deve chegar ao seu destino, que normalmente é
voltar para casa. Durante o percurso, o personagem se depara com vários
animais e objetos, escolhidos pelo fonoaudiólogo; basta clicar e
arrastar para dentro do percurso e eles vão interagir com o personagem
escolhido pela criança. A escolha pode ser feita pela necessidade de
intensificar os exercícios vocais (com foco nas maiores dificuldades da
criança) ou seguir a rotina do tratamento. Como o personagem se move
pelo cenário, todos os movimentos são feitos com as jogadas realizadas
pelo dado, que define a quantidade de casa que o personagem deve andar,
podendo ser um artifício para práticas de conhecimento matemático. Ao
encontrar com um personagem, ele irá se comunicar, emitindo um som que o
representa. O som é repetido três vezes para garantir que a criança
compreenda, caso exista necessidade o som pode ser repetido novamente —
se o fonoaudiólogo desejar. Passado este processo, a criança repete o
som, o qual vai ser capturado pelo Microsoft Kinect (através do SDK
Microsoft Speech) — o qual será armazenado e poderá ser posteriormente
analisado, contribuindo para o diagnóstico e correção de problemas
vocais.
Tela Escola (School) – O cenário é
composto por atividades educacionais, no qual estimula o estudo da
ciências, matemática, além de outras. Exemplificando melhor, no jogo de
ciências a criança, por meio do ato de colorir, vai aprendendo noções do
corpo humano pintando as partes solicitadas. Tal atividade pode ser um
forte instrumento de aprendizado, se for bem utilizado no tratamento.
Tendo seu uso em diversas formas, dependendo da criatividade e de sua
aplicação pelo profissional responsável.
No cenário que estimula o
aprendizado da matemática, o personagem precisa aprender a somar,
dividir, multiplicar e subtrair, de forma que tais interações possam ser
relacionadas ao convívio social. Na imagem, o cachorrinho (personagem
escolhido) precisa dividir de forma igual com seu amigo os ossos que ele
tem (quatro) — estimulando assim uma pratica social. Dessa forma,
durante a atividade o ideal é que a mesma prática virtual seja
estimulada em uma prática social (real).
Tela Adivinhações (Quiz)
– Por meio de imagens, a criança identifica a que se refere. Feito
isso, ela soletra o nome que identifica a imagem. Essa atividade se
assemelha ao jogo de forca, sendo considerada a ordem das letras de
forma que complete corretamente o nome que identifica o objeto ou
animais. A escolha desses, se deu ao fato que sejam comuns ao ambiente
da criança, promovendo assim uma integração do virtual com o real.
Exemplificando o cenário, a imagem de um pássaro foi utilizada: a
criança identifica e soletra. Cada letra soletrada de forma errada ou na
ordem errada, muda seu tom de cor para vermelho, cada letra soletrada
na ordem correta vai completando o nome. No fim, o jogo irá emitir um
som que o representa, neste caso, o som de um pássaro cantando.
Tela Gostar (Like)
- Atua como um reforço das atividades presentes no cotidiano da
criança, apresentando-as por meio de imagens necessitando organizá-las
como uma agenda de atividades. Assim a criança organiza as atividades,
sendo feito pelo deslizamento de uma imagem para o local definido, com o
uso do Microsoft Kinect. Para isso, a criança precisa inicialmente
escolher a atividade que irá realizar ou a que mais gosta, naquele
determinado momento. O ideal é que ela seja escolhida ou sugerida de
acordo com o horário ou com seu plano de atividades do dia a dia. Assim,
o processo de organização de atividades presente no Can Game terá uma
relação com o cotidiano da criança.
Escolhida a atividade, uma nova tela vai
surgir com a atividade selecionada, porém dividida em partes menores,
sendo necessário agora organizá-la passo a passo. Após a conclusão
apropriadamente, o jogo volta ao cenário anterior, confirmando a
realização da atividade e permitindo um tempo para que a criança
realize-a de forma real.
Tal
projeto encontra-se na fase de desenvolvimento, pesquisa e testes na
ETEPAM por meio da equipe Life Up Team, composta por alunos e amigos que
também acreditam que podemos fazer algo de bom. As imagens presentes do
projeto encontram-se em inglês, devido ao fato de termos o apresentado
em uma feira internacional de ciência e tecnologia, em Phoenix (Arizona,
Estados Unidos). Além da equipe, contamos com algumas parcerias como
uma clínica em Recife, que realiza tratamento para autismo e nos permite
a realização de testes, colaborando com informações importantes para a
melhoria contínua do projeto; o Centro de Inovação Microsoft que dá todo
suporte tecnológico; e a todos os profissionais, que de uma forma ou de
outra, contribuem para o sucesso do projeto.
Estou
ciente que esse projeto está muito longe de resolver os problemas
ligados ao autismo. Como também não tenho pretensão de mudar ou de ir
contra pesquisas e tratamentos existentes na área. Penso e acredito que
quero agregar mais valor, motivar novos projetos e pesquisas referentes
ao tema. Pois sei que sozinho minha intervenção possa ser muito
pequena, mas nem por isso me desanimo. Enquanto eu sentir que preciso,
que quero e que posso fazer algo e esse for o meu desejo, o desejo do
meu eu coração, estarei dedicando tempo para poder contribuir de alguma
forma. Assim espero que por meio desta Revista Autismo possa encontrar
pessoas dispostas a ajudar com o projeto, para quem sabe em pouco tempo
estar presente na vida da criança autista, atendendo sua expectativa e
da família. Em uma continuidade da revista, se houver a possibilidade,
prendendo continuar a explicar o projeto, a questão do uso da tecnologia
móvel, do site e de projeções futuras para que possa atender as
necessidades da criança com autismo.
Estou muito feliz em ter participado dessa edição, deixo meu email para contato, (
eraldo.guerraf@gmail.com )
envio de sugestões de melhoria ou mudanças no software. Uma vez que não
sou um especialista em autismo, mas que desejei aprender e compreender
de forma que pudesse utilizar meu conhecimento para que fosse aplicado
para esse fim. Obrigado!
"Sem um fim social o saber será a maior das futilidades" (Gilberto Freyre)
Eraldo Guerra é professor de Empreendedorismo da Escola Técnica Estadual Professor Agamemnom Magalhães (ETEPAM) e mestrando no Centro de Estudos de Sistemas Avançados do Recife.
A equipe Life Up
é formada por alunos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e alunos da Escola Técnica
Estadual Professor Agamenon Magalhães (Etepam), em Recife. Seu
integrantes são: Allan Cleysson de Oliveira Ramos, Thiago Pedrosa Lins,
Rodolfo Jose de Oliveira Soares, Luiz Reis Nogueira Neto e Eraldo Guerra
Filho (mentor).
O projeto Can Game,
é um site, aplicativo para smartphone e também um jogo para notebook e
desktop, já recebeu vários prêmios, inclusive internacionais, como a
categoria Inovação na Copa do Mundo da Tecnologia promovida pela
Microsoft, a Imagine Cup 2013, este ano na Rússia; a categoria Ciências da Computação Brasil na 27ª Mostratec, em 2012; além de vencer o Desafio Intel de Tecnologia 2013, credenciando-o a participar do evento Intel ISEF (International Science and Engineering), em Phoenix (Arizona, EUA).
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sábado, 27 de julho de 2013
Can Game é proposta de software multidisciplinar para crianças autistas
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