Esta é uma publicação extra, fora da sequência de temas pela qual
caminha esta coluna. Este desvio tem por objetivo comentar e, em parte,
responder a uma publicação recente feita pelo repórter, e pai de uma
criança autista, Luiz Fernando Vianna na Folha de São Paulo. O artigo
(disponível no link abaixo) se chama “O autismo na era da indignação”.
Em primeiro lugar gostaria de parabenizar o autor pelo excelente texto e
pelo relato sincero das angústias vividas por ele no diagnóstico do
filho e durante a busca por um tratamento; parabenizar, ainda, pelo
relato da vergonha e do preconceito inevitáveis que vêem de todos os
lados e do desespero de ver todos os sonhos e planos feitos para aquela
criança serem ameaçados. Relatos como este são fundamentais para os
pais, recém chegados a este barco, encontrarem a força necessária para
seguirem o caminho, com palavras de Luiz Fernando, “do luto à luta”.
Sou psicóloga, analista do comportamento, e atuo com crianças autistas
há 9 anos. Apesar de não ter um filho autista e de não ser sequer mãe
ainda, me identifiquei muito com as palavras de Luiz Fernando,
principalmente com a reivindicação contra o preconceito e o humor feito
em cima do tema sem cuidado e consideração pelos autistas e suas
famílias. Identifiquei-me porque não só aplico procedimentos
comportamentais com meus clientes, não só oriento seus pais e cuidadores
acerca de como estimular suas habilidades, antes de tudo isso eu me
apego a eles, fico íntima de sua vida, sua rotina, sua família, seus
desejos e, principalmente, suas dificuldades e angústias. Eu, como
muitos outros psicólogos que eu conheço, não lido com estas crianças
como meros clientes com hora marcada e um valor a ser pago no final do
mês, a humanidade que há em mim faz da minha profissão muito mais do que
um ofício, faz dela uma parte significante da minha vida pessoal.
Estes, que costumo chamar de “pequenos brilhantes” vão, aos poucos, se
tornando meus irmãos caçulas, ou filhos de grandes amigas, talvez
afilhados, sobrinhos, até um pouco filhos.
Por isso, eu encontrei nas palavras de Luiz Fernando, bem como em outros
textos de pais e ativistas desta população, um grito que também é meu,
que também está na minha garganta pronto para ser gritado onde quer que
se precise ser ouvido. As angústias, incertezas, medos e raiva de
atitudes preconceituosas que Luiz Fernando confessa em seu artigo são
sentimentos que eu vivo dia após dia com cada pai, mãe, cuidadora,
professora, irmão ou irmã de cada criança que é acompanhada por minha
equipe. Eu vejo e vivo estes mesmos sentimentos de formas muito
particulares em cada família. Em alguns momentos meus estudos e minha
experiência clínica são suficientes para acolher tais sentimentos e
confortar estas pessoas, mas em outros muitos momentos não há anos de
estudo nem anos de experiência suficientes para solucionar um
sofrimento. Então, nestes casos a minha humanidade é que me guia a só
sofrer junto e ouvir.
No tópico “FRIEZA” de seu artigo, Luiz Fernando relata suas
experiências no tratamento psicanalítico e no tratamento comportamental.
Aqui, ele apresenta um discurso sobre a intervenção comportamental que,
infelizmente, ainda é mais comum do que gostaríamos. Luiz Fernando
parece ter conhecido a análise do comportamento aplicada da pior forma
possível e, mais uma vez infelizmente, uma forma ainda muito comum no
Brasil. Por seu relato, me parece que ele conheceu esta abordagem da
psicologia por meio de profissionais despreparados e totalmente
desligados da ciência comportamental.
Gosto muito deste trecho de Michael (1980): “(...) à medida que a
modificação do comportamento começou a ser vista como uma tecnologia
efetiva, um número de psicólogos aplicados ecléticos ainda trabalhando
como clínicos, psicólogos escolares, psicólogos industriais, etc,
começaram a adicionar a análise do comportamento à sua coleção de
técnicas, um tanto quanto antes de acadêmicos ecléticos adicionarem a
visão de Skinner ao seu repertório intelectual. E se por um lado eles
puderam adquirir muito bem a tecnologia, estes novos profissionais, em
geral, não adquiriram a ciência ou a filosofia da ciência que foi
responsável pela tecnologia.” (pg. 8)
Infelizmente (de novo...), Luiz Fernando e muitos outros pais, caíram na
teia destes psicólogos citados por Michael, que viram nas “técnicas
comportamentais” a chance para tratamentos com eficácia garantida e
rápida. Tais profissionais, então, aprenderam algumas técnicas em cursos
rápidos, workshops, palestras e já se sentiram capazes de aplicar tais
procedimentos sem o olhar cuidadoso e analítico de um analista do
comportamento capacitado e comprometido com a ciência comportamental.
A análise do comportamento é uma ciência, fundamentada em dados de
pesquisas laboratoriais e de campo, firmemente sustentada por pilares
muito testados e replicados mil vezes. Seus conceitos nasceram em
estudos com delineamentos exigentes, em meio a reversões e linhas de
base múltipla, sob o olhar cuidadoso de pesquisadores dedicados a testar
se as mudanças comportamentais observadas foram mesmo produzidas pelos
procedimentos inseridos por eles. Esta ciência originou os conceitos da
teoria comportamental que embasam as técnicas que muitos psicólogos saem
aplicando a torto e a direito. Então, me pergunto: Como podem tais
psicólogos se distanciarem tanto da ciência que produziu e continua
produzindo os conceitos que eles dizem aplicar em seus consultórios? É
algo bem estranho, mas acontece mais do que imaginamos. O resultado
disso: a “Barbie terapeuta” que atendia o filho do Luiz Fernando sem se sujar, sempre numa mesa diante dele e “fiel às regras do programa ABA”. (O itálico indica palavras de Luiz Fernando).
Fiel às regras do programa ABA? Que regras? Se a tal Barbie fosse uma
analista do comportamento (fiel, aí sim, à filosofia comportamental) ela
saberia que não existem regras às quais ser fiel. Ela saberia que o
maior pressuposto filosófico da análise do comportamento é o olhar
individualizado, é a explicação do homem e de seu desenvolvimento
cognitivo, comportamental e emocional fundamentada na multideterminação
que garante, sem sombra de dúvida, que só exista um exemplar de cada um
de nós. Ela saberia que o homem é, antes de tudo, determinado
geneticamente (filogênese), ou seja, recebe de seus pais genes que vão
determinar suas respostas involuntárias e selecionadas pelo seu valor
para a sobrevivência, além disso, estes genes determinam a sua altura, a
cor dos olhos, do cabelo, algumas doenças, etc. Este primeiro
determinante só produz cópias em gêmeos monozigóticos. Mas nem estes são
pessoas iguais, e é aí que entra o segundo determinante dos
comportamentos humanos: a ontogênese, ou seja, a história de vida, as
experiências que vivemos desde o primeiro minuto que pulamos para fora
da barriga de nossas mães. Este determinante acaba com qualquer chance
de duplicidade, gêmeos monozigóticos podem ser pegos pelo obstetra de
forma diferente, um pelo pé, o outro pela cabeça; um deles pode aprender
a andar de bicicleta na primeira pedalada e se tornar um grande
ciclista, e o outro pode ter o azar de encontrar um buraco no caminho,
levar o maior tombo e nunca mais subir na bicicleta; um pode gostar de
ler e se dar bem nos estudos, o outro pode ser bom nos esportes (e pode
até ficar mais rico que o irmão). Enfim, se a história de vida for
considerada, ninguém é igual e, como Luiz Fernando bem disse “não há um autista igual a outro”,
o que é óbvio, já que os autistas são seres humanos e não há um ser
humano igual ao outro. Para contribuir mais um pouco com a
individualidade, a filosofia comportamental descreveu um terceiro
determinante do comportamento: a cultura, que determina os costumes de
cada povo, as preferências, as paixões, as religiões, que determina
nosso biquíni fio dental nas praias brasileiras e a burca que esconde a
beleza das mulheres afegãs.
Sendo esta a base da filosofia behaviorista, construída por Skinner e
seus seguidores, definitivamente não há regras às quais ser fiel, a não
ser a regra de que cada indivíduo é único então ele deve ser analisado
como tal e a intervenção com ele deve ser planejada somente com base na
avaliação de seu repertório inicial e não com um “copia e cola” de um
curso assistido ou, pior, um “copia e cola” do tratamento de outra
criança (por incrível que pareça, acontece... e muito!).
Se a terapeuta do filho do Luiz Fernando fosse, de fato, uma analista do comportamento, ela não iria “ensiná-lo o que era amarelo, azul, vermelho na abstração, sem casar as cores com nada que fizesse parte do cotidiano dele”
(palavras de Luiz Fernando). Um analista do comportamento, comprometido
com a ciência e a filosofia comportamental, planejaria qualquer
procedimento de ensino com base na avaliação inicial do repertório da
criança e, principalmente, usaria no processo de ensino estímulos de seu
interesse e de seu cotidiano. Porque motivação também é uma
característica muito particular e embasa a terapia comportamental.
Se decidirmos usar estímulos neutros para ensinar uma determinada
discriminação visual, por exemplo, quadrados coloridos impressos, e a
criança olha para estes estímulos e os dados do treino indicam que está
havendo aprendizado, não vejo problema em manter o ensino com tais
estímulos. Mas, se a criança não olha para tais estímulos e nem dá
sinais de aprendizado, cabe ao analista do comportamento orientar que
tais estímulos sejam substituídos por Relâmpagos Mcqueens (sendo a
criança fã dos personagens do filme “Carros”). Então, usaríamos um
Mcqueen vermelho, um Mcqueen azul e um Mcqueen amarelo para ensinar as
cores a esta criança que, como todos nós, é única e não “ter suas características peculiares compreendidas”,
como apontou Luiz Fernando como sendo uma característica da linha
comportamentalista, é ignorar toda a visão de homem da filosofia
comportamental.
A falta de conhecimento sobre a análise do comportamento produz tais
terapeutas e tais idéias distorcidas sobre esta abordagem da psicologia.
A falta de conhecimento aprofundado gera os apelidos que a análise do
comportamento tem recebido, como: reducionista, condicionamento,
conjunto de técnicas e “programa de exercícios”, como apontou
Luiz Fernando. É importante resgatar a história da análise do
comportamento e lembrar que, antes de ser um tipo de intervenção usado
com autismo, a análise do comportamento é uma abordagem da psicologia,
como a psicanálise, a psicologia analítica, a fenomenologia, a
psicologia do desenvolvimento, a psicologia sócio-histórica, etc. Sendo
uma abordagem da psicologia, a análise do comportamento tem uma
filosofia e uma ciência (como todas as outras abordagens) que embasa a
prática dos psicólogos adeptos a ela. Estes psicólogos atuam em três
frentes principais: 1) Teórica – são pesquisadores que atuam em
laboratório ou em pesquisas de campo, fazendo pesquisa básica ou
aplicada para desenvolver e aprofundar os conceitos que embasam a
atuação aplicada; 2) Histórica – estudiosos da história da análise do
comportamento e de seus conceitos; e 3) Aplicada – psicólogos que atuam
na aplicação dos conceitos teóricos e dos procedimentos oriundos destes
na prática clínica (atendendo em consultórios), em empresas, nos
esportes, em hospitais, em escolas, enfim, onde quer que haja uma
demanda para análise e modificação de comportamentos.
É esta terceira frente de atuação que chamamos de Análise do Comportamento Aplicada (em inglês, ABA – Applied Behavior Analysis). ABA não é um “programa de exercícios”,
como disse Luiz Fernando, não é um pacote de técnicas que foi criado e
desenvolvido para o tratamento do autismo como já ouvi falar tantas
vezes (“Meu filho faz ABA”), não é um manual que se compra nas
livrarias e se sai aplicando nos clientes, filhos ou alunos. ABA é uma
área de atuação de uma abordagem da psicologia e pode ser utilizada em
qualquer contexto humano, individual ou social, na clínica com um casal
em crise conjugal; na escola com uma turma problemática; num time de
futebol desmotivado; numa empresa com funcionários que não “vestem a
camisa”; no hospital com pacientes em fase terminal e que querem
analisar a própria vida; enfim, onde quer que haja necessidade de
análise e mudança.
A análise do comportamento aplicada começou a olhar para o autismo,
principalmente, a partir dos estudos de Lovaas (1987), que desenvolveu
um programa de intervenção baseado na teoria comportamental. Desde
então, o “ABA com autismo” cresceu desenfreada e descontroladamente, o
que era de se esperar, tendo em vista os resultados positivos obtidos
logo no início do tratamento. Porém, este crescimento desenfreado
distanciou os profissionais dos ensinamentos de Lovaas, cujo programa de
ensino era baseado em “40 horas semanais de intervenção comportamental individualizada por um período de 2 anos ou mais”
(McEachin, Smith e Lovaas, 1993, pg. 360). Na prática clínica, isso não
significa, obviamente, que a criança ficará na sala do terapeuta por 8h
diárias 5 dias por semana. Significa que cabe ao analista do
comportamento não só aplicar os procedimentos de ensino diretamente com a
criança, mas, principalmente, treinar os pais, cuidadores, professores,
motorista, cozinheira, faxineira, enfim, qualquer pessoa que conviva
com a criança, para que estes também estimulem a emissão de respostas
adequadas e usem procedimentos comportamentais para controlar as
respostas inadequadas. Assim, atingimos as 40h semanais, com
“intervenção” sendo feita no banho, no almoço, no caminho até a escola,
etc. E isso a “Barbie terapeuta”, e muitos outros colegas que sequer sabem quem foi Lovass, não devem fazer.
McEachin, Smith e Lovaas (1993) afirmaram que “(...) o tratamento é
complexo e, para uma replicação correta do mesmo, um investigador deve
possuir uma base sólida na investigação da teoria da aprendizagem.”.
Esta base teórica sólida tem sido desconsiderada por muitos “meros
aplicadores de ABA”, pois “analistas do comportamento” é um termo que
não lhes cabe.
Howlin (2010) avaliou tratamentos psicológicos para crianças com
transtornos do espectro do autismo (TEA) e chegou a duas importantes
conclusões: 1) As intervenções comportamentais são as mais passíveis de
avaliação, porque são as únicas que têm dados para serem analisados,
permitindo a comparação do comportamento antes e depois da intervenção; e
2) Os melhores programas pesquisados são aqueles que envolvem
intervenção intensiva, precoce e em casa, e aqueles com foco em
comunicação e interação entre pais e criança. Este segundo ponto define a
intervenção comportamental bem feita e fiel à filosofia e à ciência
comportamental, e não algumas sessões feitas por uma “aplicadora de
técnicas”.
Referências Bibliográficas:
Howlin, P. (2010). Evaluating psychological treatments for children with
autism-spectrum disorders. Advances in Psychiatric Treatment. 16 (2),
133-140.
Lovaas, O. I. (1987). Behavioral treatment and normal educational and
intellectual functioning in young autistic children. Journal of
Consulting and Clinical Psychology, 55: 3-9.
McEachin, J. J., Smith, T. & Lovaas, O. I. (1993). Long-term outcome
for children with autism who received early intensive behavioral
treatment. American Journal on Mental Retardation, 97 (4), 359-372.
Michael, J. (1980). Flight from Behavior Analysis. The Behavior Analyst, 3, 1-22.
Vianna, L. F. (2013). O autismo na era da indignação. In: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1247106-o-autismo-na-era-da-indignacao.shtml . Publicado em: 17/03/2013 - 08h03.
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