Retirando o glúten e a
caseína da alimentação, a maioria das crianças com autismo regista grandes
melhorias.
As crianças com autismo
podem beneficiar de uma dieta sem caseína (uma proteína do leite), sem glúten e
sem soja e muito rica em ácidos gordos ómega 3. A nova abordagem surgiu nos EUA
há dez anos, mas já tem milhares de seguidores, incluindo alguns portugueses,
esclarece a nutricionista Daniela Seabra.
O que é que o autismo e
outras doenças do espetro do autismo têm a ver com a alimentação?
Para responder a essa
questão, gosto de citar um psiquiatra que ouvi numa apresentação e que diz que,
na anatomia, os profissionais de saúde se esquecem que existe pescoço e que a
cabeça está ligada ao corpo. Algumas doenças psiquiátricas e neurológicas
envolvem apenas o cérebro, mas outras não – é o caso do autismo. E a verdade é
que o cérebro funciona à custa do corpo. Isto para dizer que os
neurotransmissores, as substâncias químicas usadas na comunicação entre
neurónios, são nutrientes e toda a gente sabe que quando são retirados alguns
nutrientes importantes o cérebro deixa de funcionar tão bem. Aumentar uns e
retirar outros também tem influência. O que sabemos é que as crianças com
autismo têm alterações bioquímicas e fisiológicas específicas e não conseguem
lidar com certos alimentos, que devem ser retirados, e precisam de doses mais
elevadas de outros nutrientes, que devem ser acrescentados.
Que alimentos que devem ser
eliminados?
Eliminamos compostos que
alteram a comunicação cerebral. Sabemos que a grande maioria destas crianças
reage ao glúten e à caseína (uma proteína que existe no leite) e verificamos
que, retirando o glúten e a caseína, entre sessenta a setenta por cento
registam melhorias. É muito significativo.
Mas também recorrem a
suplementos alimentares. Quais?
A maior parte das crianças
com autismo precisa de fazer ómega 3, sobretudo EPA (ácido eicosapentaenóico,
que é um potente anti-inflamatório), e DHA (ácido docosahexaenóico, fundamental
para os neurónios e estrutura cerebral). Algumas também têm deficiência de
magnésio (o que contribui para a irritabilidade e excitação) e de vitamina B6,
e um enorme stress oxidativo, o que altera o funcionamento celular e a
expressão genética.
Qual é o princípio da
abordagem biomédica do autismo?
Retirar o que faz mal, repor
o que faz falta e reequilibrar o que está desequilibrado. No tratamento do
autismo é fundamental a interdisciplinaridade – apoio médico (pedopsiquiatria e
neurologia, mas também gastrenterologia, imunologia, alergologia), terapias
comportamentais, nutrição e muita compreensão, carinho, amor e aceitação.
A retirada dos alimentos é
feita às cegas ou fazem-se exames de diagnóstico?
Fazem-se análises ao sangue,
urina e fezes e faz-se um exame físico (pele, unhas, cabelo). Mas importa dizer
que não há um protocolo que possa ser aplicado a todas as crianças pois, se
somos diferentes uns dos outros, nas crianças com autismo essas diferenças são
ainda mais marcantes e é difícil encontrar um grupo homogéneo. Só a dieta sem
caseína e sem glúten é que é transversal, os suplementos e as terapias
comportamentais variam de criança para criança. Certo é que numa primeira fase
se retira tudo o que é lixo alimentar, especialmente corantes, aditivos e
pesticidas. Na segunda etapa, retiramos o glúten (existe no trigo, cevada,
centeio e aveia) e a caseína (todos os lacticínios). Os pais devem ser muito
rigorosos neste regime para que, seis meses depois, se possa avaliar a eficácia
da dieta. Os dados que existem mostram melhoria em sessenta a setenta por cento
das crianças.
Que resultado são
alcançados? Qual é sua experiência?
Trabalho com crianças com
autismo desde 2009, já acompanhei perto de cem e, até agora, posso dizer que só
uma é que não melhorou com a dieta sem caseína e sem glúten. Mas há um grupo no
Facebook – Dieta sem Caseína, sem Glúten e sem Soja – Portugal –
onde centenas de pais partilham experiências e trocam impressões, e o que
muitos registam são as melhorias que observam nos seus filhos.
É um grupo de apoio? E
porquê a soja?
Uma boa parte das crianças
com autismo tem tendência alérgica e, ao contrário do que muitas pessoas
julgam, a soja é um alergénio muito potente. Quanto ao grupo, sim, acaba por
funcionar como grupo de apoio, mas em Portugal pouco ou nada se faz nessa área,
apesar de ser fundamental que os pais partilhem experiências, troquem ideias,
sugestões e receitas, se informem sobre produtos, marcas, lojas, etc. Nos EUA,
isso faz-se com um profissionalismo que não tem paralelo. Quem tiver interesse
pode ir aos sites da
TACA – Talk About Curing Autism (www.tacanow.org) ou da Generation Rescue (www.generationrescue.org)
e verificar.
Quem tiver um filho com
autismo pode experimentar estas alterações sem correr riscos?
Retirar o glúten não
comporta nenhum risco nutricional – é só substituir um cereal por outro sem
glúten, por exemplo milho, arroz, trigo-sarraceno – mas é importante que os
pais saibam que com a caseína já é diferente. É que o cálcio e a proteína,
habitualmente fornecidos pelo leite e fundamentais para o desenvolvimento das
crianças, têm de ser compensados. E para isso já é preciso apoio de um
profissional. Portanto, direi que, na primeira fase, quando é preciso trocar os
cereais, pode bastar a informação e o apoio entre pais, mas depois é preciso um
nutricionista.
Quando e como se começou a
valorizar a nutrição no tratamento do autismo?
Foi nos EUA, creio que em
1995, que um grupo de pais de crianças com autismo e com formação em medicina e
noutras áreas da saúde começaram a reunir para discutir todas as alterações da
doença – além das alterações cerebrais, da linguagem e do comportamento, a
maior parte das crianças com autismo tem perturbações gastrointestinais,
eczema, alergias severas. E foi nestes sintomas que os pais começaram a
intervir, primeiro mudando a alimentação, depois introduzindo suplementação
nutricional. Em pouco tempo começaram a verificar melhorias e a informação
começou a circular.
Foi assim que nasceu o
chamado grupo DAN! – Defeat Autism Now (Vença o
Autismo Agora!)?
Sim, começaram por ser
conhecidos como os especialista DAN! E em pouco tempo, juntaram-se muitos mais
pais, com formação em bioquímica, medicina, nutrição, farmácia, que começaram a
estudar e a confirmar as melhorias que vinham, nomeadamente com as mudanças
alimentares e a suplementação nutricional. O movimento cresceu, ganhou vida
própria e já envolve milhares de pais em todo o mundo. Neste momento, há
milhares de crianças com perturbações do autismo que fazem uma alimentação sem
glúten e sem caseína e que estão francamente melhores: os sintomas regrediram e
algumas perderam diagnóstico de autismo. Claro que as terapias comportamentais
são muito importantes: nós «limpamos o terreno», os terapeutas «arrumam» e
«ensinam» as crianças a comunicar, a brincar, etc.
Antes da entrevista,
telefonei para algumas instituições que apoiam crianças com autismo e nenhuma
tinha ouvido falar da dieta sem caseína, sem glúten e sem soja, nem tinham
apoio de nenhum nutricionista. Porquê?
É uma falha. Por um lado, é
uma abordagem relativamente recente e há muito desconhecimento. Por outro, as
principais associações de autismo ainda não reconhecem os estudos que confirmam
os benefícios da dieta sem caseína, soja e glúten.
Os resultados aparentam ser
bons, mas não há evidência científica, é isso?
Há dezenas de estudos já efectuados
nos EUA que o comprovam. E muitos outros estão em curso. Mas ainda não foi
aceite pela maior parte da comunidade médica. Todavia, diante dos bons
resultados, e talvez devido à facilidade de acesso à informação através da
internet, a adesão dos pais é cada vez maior. Eles são os primeiros a comprovar
os benefícios. É assim nos EUA, Canadá, Brasil, Israel, países nórdicos, na
América Latina e cá também.
O que acontece quando as
crianças voltam a ingerir glúten e caseína?
As alterações de
comportamento, alguns sintomas e perturbações gastrointestinais, da pele, as
alergias, a inflamação cerebral, etc., voltam a agravar-se. A susceptibilidade
está lá, a alimentação pode aumentá-la ou neutralizá-la. Os alimentos têm o
poder de modular inúmeras funções orgânicas, a comunicação hormonal e a
expressão genética.
Uma pessoa adulta com
autismo também beneficia desta abordagem?
É nos mais pequenos que
normalmente se observam os melhores resultados. Apesar de todos poderem
melhorar, com a idade, a mudança tende a ser bem menor.
E a comunidade médica, como
é que lida com isto?
Em 2008, quando estive nos
EUA, ainda se sentia algum cepticismo em relação à abordagem dos tais médicos
DAN! Mas entretanto, ao que começou por ser um movimento de pais médicos, pais
nutricionistas, pais bioquímicos, começaram a juntar-se profissionais e
investigadores de prestigiados centros médicos e universidades americanas e a
coisa mudou de figura. Hoje já há centros de investigação como o Autism
Research Institute (www.autism.com), a Medical Academy of
Pediatric Special Needs (www.medmaps.org), a Autism International
Association (www.autismone.org), entre outras, onde são
formados médicos e outros profissionais de saúde. Os benefícios para as
crianças começam a ser reconhecidos e o tratamento biomédico do autismo tem
cada vez mais adeptos.
E os médicos e
nutricionistas portugueses estão recetivos?
Já há alguns pedopsiquiatras
e neurologistas que falam desta abordagem aos pais, mas ainda com muitos
receios. Mas a maior parte nem quer ouvir falar. Também não conheço nenhum
nutricionista que trabalhe assim.
Esta dieta é usada com
sucesso no controlo de outras doenças do espectro do autismo?
No Síndrome de Asperger,
sim. Mas a alimentação também tem uma influência enorme na hiperatividade e
espanta-me que se mediquem as crianças sem que também se proponha uma alteração
no regime alimentar. Por exemplo, o açúcar e os aditivos alimentares, sobretudo
os corantes, devem ser reduzidos ao mínimo. Não é por acaso que algumas marcas
de gomas e de gelatina já têm inscrito nas embalagens o aviso de que «pode
induzir hiperatividade». Só que ainda é em letras muito pequeninas.
QUEM É DANIELA SEABRA?
Nutricionista pela Faculdade
de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, especializou-se
em nutrição funcional no Institute for Functional Medicine (EUA)
e em tratamento biomédico do autismo no Autism Research Institute (também nos
EUA). Trabalhou dez anos no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira
(Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga) mas atualmente só faz consulta
privada.
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