“O CBD deve ser utilizado como droga adjuvante ao tratamento medicamentoso já utilizado pelos pacientes”
O CFM publicou Resolução regulamentando o uso do canabidiol (CBD) no tratamento de epilepsia (acesse aqui a íntegra). No último dia 14, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso medicinal da substância, retirando-a da lista de proibidas e passando a ser controlada. O SBP Notícias conversou com o dr.Paulo Breno Noronha Liberalesso, dos Departamentos de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria e de Neurologia Infantil do Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba (PR). Leia, a seguir.
Dr. Paulo, o que é exatamente o CDB e por que passou a ser tão discutido ultimamente?
A maconha é uma planta cujo nome científico é Cannabis sativa. Os efeitos medicinais e psicoativos dessa planta são conhecidos há mais de 5.000 anos. Há relatos muito antigos sobre seu uso no tratamento da dor crônica, agitação, constipação intestinal e das convulsões. Há evidências de que a maconha já era inalada durante rituais de cura ou rituais místicos em diversos locais da Europa, China e América, muito antes da Era Cristã. Os antigos Assírios utilizavam a inalação de flores queimadas da maconha em cerimônias religiosas, nas quais os xamãs costumavam atingir um estado de elevação espiritual, algo semelhante o um “estado de transe”. Os efeitos medicinais da Cannabis sativa decorrem da presença de compostos denominados canabinóides. A quantidade e a diversidade de canabinóides variam, consideravelmente, segundo a variedade genética da Cannabis sativa. O CBD (canabidiol) é um destes compostos canabinóides. Embora os efeitos terapêuticos do CBD sejam conhecidos há muito tempo, pesquisas clínicas e laboratoriais mais bem conduzidas e, portanto, com resultados mais confiáveis, surgiram na literatura médica mais recentemente. Uma maior quantidade de documentos científicos demonstrando a segurança e eficácia de seu uso fez ressurgir o interesse de médicos e familiares a respeito deste assunto.
O sr. poderia comentar a situação das crianças e adolescentes com epilepsia e a relação com o tratamento com CDB? Quais as vantagens desse tratamento?
A epilepsia está entre as doenças neurológicas crônicas mais frequentes da infância e da adolescência, podendo ser compreendida como uma predisposição persistente do cérebro para gerar crises epilépticas de forma recorrente. A definição de epilepsia passou por grandes alterações ao longo do tempo. Em 2014, a Liga Internacional contra Epilepsia (ILAE) propôs uma definição bastante simples e prática: epilepsia é uma doença do cérebro caracterizada por pelo menos umas das seguintes situações - (a) ocorrência de uma crise não provocada e elevado risco de ocorrência de uma segunda crise, (b) ocorrência de pelo menos duas crises não provocadas com intervalo maior que 24 horas e (C) quando estiver diagnosticada uma síndrome epiléptica. De modo geral, aproximadamente um terço das crianças e adolescentes com epilepsia não terão suas crises controladas de forma sustentada e satisfatória por tempo prolongado com os fármacos antiepilépticos disponíveis no mercado atualmente. E, teoricamente, este seria o “público” para o qual se discutiria o uso de CBD. Portanto, nos casos em que se discute a indicação de CBD, a epilepsia estaria classificada como “clinicamente refratária” ou “epilepsia de difícil controle medicamentoso”.
Em se falando exclusivamente das epilepsias e síndromes epilépticas da infância e adolescência, estariam entre as maiores indicações a síndrome de Dravet (epilepsia mioclônica severa da infância), a síndrome de Dosse (epilepsia mioclônico-astática) e a encefalopatia epiléptica de Lennox-Gastaut. É importante lembrarmos que estas síndromes epilépticas descritas são extremamente graves e, na maior parte dos casos, apresentam um efeito devastador sobre o desenvolvimento neurológico e sobre a qualidade de vida destas crianças e adolescentes. Outro impacto não menos devastador ocorre sobre as famílias desses pacientes, que veem a deterioração neurológica progressiva e, muitas vezes irreversível, de seus filhos, netos, irmãos etc...
Contudo, é possível, e bastante provável, que pacientes com outras formas de epilepsia e síndromes epilépticas também venham a se beneficiar do uso de CBD, quer quanto à diminuição da frequência quer quanto à redução da intensidade das crises convulsivas. Neste momento, em que esta discussão está muito viva na sociedade brasileira e mundial, é absolutamente fundamental estabelecer uma clara distinção entre o CBD (como já dissemos um dos mais de 80 canabinóides presentes na maconha) e a planta in natura, já que o CBD não produz efeitos psicoativos e nem euforizantes.
Em sua opinião, em que momento os colegas pediatras devem encaminhar seu paciente ao neurologista pediátrico para avaliação para o uso de CBD?
O CBD não está entre os primeiros fármacos antiepilépticos indicados no tratamento de nenhuma epilepsia ou síndrome epiléptica (ou seja, não é ainda considerado droga de primeira linha nestes casos). Portanto, o CBD deve ser utilizado como droga adjuvante ao tratamento medicamentoso já utilizado pelos pacientes. Aliás, este aspecto é bastante claro na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM). Nos casos em que se opta por iniciar o CBD, não se recomenda a interrupção dos fármacos em uso. Sendo assim, como estamos falando de pacientes com epilepsias bastante graves, muitas vezes com diversas recorrências de crises convulsivas ao dia, o mais adequado é que estes pacientes já estivessem sendo acompanhados por médico neuropediatra. Os colegas que estão acostumados ao tratamento de crianças com doenças neurológicas crônicas e graves como as epilepsias sabem da necessidade e da importância dos médicos pediatras e neuropediatras trabalhando lado a lado... são as febres e infecções que desencadeiam ou intensificam as convulsões... são as convulsões que complicam com quadros de pneumonias por aspiração... e assim por diante... não há outra forma de conduzir estas crianças que não seja através do trabalho conjunto...
Qual a importância da Resolução do CFM?
No meu entendimento, a Resolução do CFM é um marco importante nesse assunto. Embora haja críticas, algumas até bastante consistentes, até o momento não havia regulamentação. Entendo a Resolução como um marco inicial que amplia o horizonte da discussão na sociedade. Desse modo, o CFM cumpre seu papel norteador e balizador das ações do médico brasileiro.
Alguns familiares de pacientes comemoraram a Resolução do CFM como um avanço. Outros acharam que a decisão poderia ter ido além, criticando as restrições, como o uso após os 18 anos e somente em pacientes refratários a outras medicações. Familiares alegam que isso limita o uso do CBD e expõe esses pacientes às medicações com efeitos colaterais mais intensos. Qual sua análise a este respeito?
A utilização de uma “nova” medicação ou de uma nova tecnologia no campo da medicina sempre é envolta de algumas dúvidas e incertezas. E com o CBD não seria diferente. Quando uma instituição se propõe a criar uma regulamentação sobre determinado assunto é fundamental que se estabeleçam determinados limites. E foi dessa forma que o CFM agiu. Por exemplo, limitando a indicação do CBD como droga de adição (ou seja, CBD não é fármaco antiepiléptico de primeira escolha), estabelecendo a dosagem mínima da medicação, estabelecendo a faixa etária de indicação e quem devem ser os médicos responsáveis pela prescrição da droga. Certamente, com o aumento no número de evidências científicas a respeito da eficácia do CBD no tratamento da epilepsia na infância e adolescência, os critérios do CFM deverão ser revistos e, quem sabe, ampliados.
Alguns familiares afirmam que a impossibilidade de usar CBD acaba por expor às crianças aos efeitos colaterais de outros fármacos antiepilépticos. Bom, isto evidentemente é uma afirmação verdadeira... mas há o outro lado dessa moeda...
Primeiramente, não haveria a opção de não tratar com fármacos antiepilépticos estas crianças, ou seja, alguma ou algumas drogas elas estariam utilizando de todo modo. E toda medicação tem seus efeitos colaterais, embora especificamente no tratamento da epilepsia, esses efeitos colaterais sejam bem conhecidos e possam ser controlados com ajustes de doses e trocas de medicações. Por outro lado, não se sabe exatamente quais os efeitos a longo prazo que o CBD e outros canabinóides podem ter sobre a neurofisiologia do sistema nervoso central. Assim, não é possível afastar “efeitos colaterais tardios” quando se fala de uma medicação como essa.
Outra crítica veiculada na imprensa foi o fato de o CBD apenas poder ser prescrito por médicos nas áreas de neurologia (e áreas de atuação correlatas), neurocirurgia e psiquiatria. O CFM também não autorizou a prescrição de CBD em casos de esquizofrenia e doença de Parkinson. O que o senhor pensa a esse respeito? Haveria outras indicações terapêuticas?
Quanto aos médicos que poderão prescrever o CBD, esse assunto deverá ser mais discutido e detalhado no futuro. Vejo com cautela essa restrição que consta na Resolução do CFM pelo seguinte motivo: nosso país tem dimensões continentais e, desse modo, há inúmeras regiões que não contarão com um médico neuropediatra, neurologista, neurocirurgião e psiquiatra nos próximos muitos anos. Então respondo a essa pergunta com outro questionamento: os pacientes que moram nessas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos não terão direito a se beneficiar desta modalidade de tratamento? Creio que este aspecto em particular precisará de mais reflexão e discussão.
Sobre outras indicações dos compostos canabinóides (além da epilepsia): Embora com uma história milenar, sabemos ainda pouco sobre todo o potencial desta planta... há descrições históricas sobre seu uso na constipação intestinal, no tratamento da malária, como expectorante pulmonar, contra a fadiga e o cansaço, em alguns distúrbios de movimento, como antidepressivo e em uma série de outras doenças mentais...somente o tempo e novos e mais robustos estudos serão capazes de nos mostrar todo o potencial desta medicação.
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