Teoria da mente significa a capacidade para atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o comportamento das mesmas em função destas atribuições (Premack & Woodruff, 1978).
Paralelamente à noção de deficit inato na capacidade de entrar em sintonia afetiva com os outros no autismo, proposta pelas teorias afetivas, surgiram as explicações de danos na capacidade de meta-representar, ou mais especificamente, na habilidade de desenvolver uma teoria da mente, como fator explicativo da síndrome do autismo.
Teoria da mente significa a capacidade para atribuir estados mentais a outras pessoas e predizer o comportamento das mesmas em função destas atribuições (Premack & Woodruff, 1978). O termo ‘teoria’ foi empregado por esses autores porque esse processo envolve um sistema de inferências sobre estados que não são diretamente observáveis e que podem ser usados para predizer o comportamento de outros.
Para alguns teóricos do desenvolvimento (por exemplo, Wellman, 1990; Harris, 1994) essa capacidade constituir-se-ia no desenvolvimento de um sistema de inferências incorporado de um conjunto de princípios relacionado a um tipo de senso comum acerca de processos explicativos do comportamento humano, ou seja, uma psicologia popular do comportamento (Horgan & Woodward, 1990). O impulso inicial para essa habilidade seria inato, porém o processo em si seria aprendido, através da interação com os cuidadores e com outras pessoas, durante o qual a criança vai incorporando informações da psicologia popular disponível na sua cultura.
Tem sido sugerido por alguns teóricos (Harris, 1994; Wellman, 1994) que uma teoria da mente operante se refletiria na capacidade da criança em atribuir a si própria ou a outrem, estados mentais como desejos, crenças e intenções - habilidade já presente ao redor dos três anos de idade. Nessa época, a criança estaria apta a distinguir estados mentais de físicos, bem como aparência (e ‘faz-de-conta’) de realidade.
Em princípio a criança faria comentários a respeito dos seus próprios estados mentais para depois comentar a respeito do de outras pessoas e, dessa forma, predizer o comportamento das mesmas. Então, pode se dizer que o conceito subjacente ao desenvolvimento da teoria da mente é o da representação – expressão de um objeto ou evento através de categorias alheias a esses mesmos objetos/eventos (Perner, 1991).
A capacidade de representar passa por diferentes estágios ao longo do desenvolvimento. Durante o primeiro ano de vida ocorreria o estabelecimento de representações de nível primário, que se caracteriza pela apreensão do mundo circundante de forma sensorial, isto é, haveria a percepção apenas do objeto ou referente presente (Perner, 1991). Esse período corresponde ao estágio sensório-motor de Piaget (1966) e ao de representação primária-perceptual de Leslie (1987). Para este último, nessa etapa existe uma relação direta e transparente com o mundo, na qual representar constitui-se numa descrição literal da situação resultante da percepção (modelo presente).
No segundo ano de vida, a criança evolui para um estágio (representação secundária para Perner, 1991) no qual passa a diferenciar o real do faz-de-conta, não necessitando mais da presença do objeto para representá-lo. Esse estágio corresponderia ao início da capacidade simbólica para Piaget (1966) e da meta-representação para Leslie (1987) a qual se tornaria ‘opaca’, isto é, seria destacada da realidade e transformada, através da manipulação da própria percepção. Em outras palavras, a representação de uma percepção não seria mais uma representação do mundo de uma forma direta (transparente), mas representações das representações (daí meta-representação). Essa suspensão das relações de referência com o mundo é denominada por Leslie como decouple (Leslie, 1987).
Ao dividir as construções de situações imaginárias com os outros, isto é, ao compreender o ‘faz-de-conta’ nos outros, estabelece-se uma forma elementar de compreender o estado mental dos outros (suas crenças, desejos e intenções) – os rudimentos de uma teoria da mente. Nesse ponto da discussão é imperativo que se faça uma distinção entre o conceito de meta-representação de Leslie e Perner.
Para este último, a meta-representação implica um processo mais avançado que a representação da representação – necessitaria a compreensão do próprio ato representacional (Perner, 1991). O desenvolvimento de uma teoria da mente envolveria, então, não apenas uma representação interna a respeito das coisas mas também a capacidade de refletir sobre essas representações (Dennet, 1978).
A compreensão da criança a respeito das crenças dos outros foi primeiro investigada, experimentalmente, por Wimmer e Perner (1983) utilizando-se de um teste baseado numa estória de bonecos na qual um personagem mantém uma crença falsa (diferente) daquela da criança. Crianças que passavam nesse teste demonstravam capacidade para predizer o comportamento do personagem baseado na crença (falsa) do mesmo.
Baron-Cohen e equipe (Baron-Cohen, Leslie & Frith, 1985) adaptaram esse experimento, criando o teste da Sally-Ann para investigar o possível comprometimento de crianças com autismo na habilidade de usar o contexto social para compreender o que outras pessoas pensam e acreditam. Para os autores, um dos aspectos fundamentais da teoria da mente é a compreensão do papel da crença na determinação de uma ação, ou seja, aquilo que a pessoa acredita pode ser mais relevante no desencadeamento de um dado comportamento do que quaisquer circunstâncias reais. Dessa forma, a consideração de falsas crenças seria tão importante na determinação de um comportamento quanto as reais.
Nessa tarefa, uma boneca (Sally) coloca o seu brinquedo numa caixa e sai da sala. Enquanto isso, outra boneca (Ann) tira o brinquedo da caixa em que Sally o havia colocado e deposita-o em outra caixa. Pergunta-se à criança em qual das caixas Sally provavelmente vai procurar o brinquedo quando retornar à sala. As crianças com autismo, ao contrário das crianças com desenvolvimento normal e com deficiência mental, mostraram dificuldades em perceber que Sally não tinha nenhuma informação a respeito da mudança de caixa, e tenderam a responder que Sally procuraria o brinquedo na caixa em que Ann o havia colocado.
Em outras palavras, essas crianças demonstraram dificuldades em compreender o que Sally pensava e em predizer o seu comportamento com base no seu pensamento. Tais resultados foram replicados, subseqüentemente, (Prior, Dahlstrom, & Squires, 1990; Ozonoff, Pennington & Rogers, 1991), exceto para as crianças com níveis mais altos de funcionamento global, e para aquelas com síndrome de Asperger, levando à conclusão de que crianças com autismo apresentam um atraso ou desvio no desenvolvimento da capacidade de desenvolver uma teoria da mente (Baron-Cohen, 1991). Esse comprometimento acarretaria deficits no comportamento social como um todo e na linguagem.
Os deficits de linguagem seriam uma conseqüência da incapacidade dessas crianças para se comunicarem com outras pessoas a respeito de estados mentais assim como os distúrbios no comportamento social refletiriam a dificuldade em dar um sentido ao que as pessoas pensam e ao modo como se comportam.
Baron-Cohen (1995), expandindo os modelos de Wellman e Leslie, propôs um outro modelo para explicar o desenvolvimento do sistema representacional, denominado de sistema de leitura da mente (mindreading). Adotando uma perspectiva evolucionista, sustenta que a função desse sistema seria estabelecer ligações entre as propriedades do mundo, através de quatro mecanismos básicos e interatuantes: detector de intencionalidade (ID); detector de direcionamento do olhar (EDD), mecanismo de atenção compartilhada (SAM) e mecanismo de teoria da mente (ToMM). Os dois primeiros permitem que a criança construa imagens sobre pessoas e aja segundo uma intenção, estabelecendo dessa forma, representações entre o agente da ação e o objeto referente desta ação (representação diádica), sem contudo haver a compreensão de que ambos estão compartilhando uma mesma intenção (representação triádica).
Esse último processo só se viabiliza através do recebimento de informações sobre o estado perceptual do agente (fornecidas pelo ID e EDD), as quais são então associadas ao seu próprio, através do mecanismo de atenção compartilhada.
O autor enfatiza o papel dos sentidos (visão, tato e audição) no mecanismo de atenção compartilhada - em especial a importância do olhar na interpretação de ações ambíguas no que se refere a estados mentais – o qual constitui-se nos fundamentos da teoria da mente (ToMM). Esse último dispositivo habilitaria a criança a interpretar o comportamento não somente em termos volitivos e perceptuais, mas também em termos epistêmicos (pensamento, conhecimento, crença, etc.) e sua relação com a ação, utilizando-se do referencial de opacidade ou decouple, descrito por Leslie (1987).
Essa teoria afirma que os mecanismos de ID e EDD estariam relativamente intactos nas crianças com autismo, enquanto os dispositivos SAM e ToMM estariam deficitários.
Ou seja, aqueles comportamentos sociais que não envolvem meta-representação, como por exemplo, os afiliativos (abraçar, beijar) e instrumentais (busca de assistência) podem apresentar-se relativamente sem comprometimento, o que não ocorreria com aqueles envolvendo a atribuição de estados mentais a outrem.
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