seg, 04/03/13
por Alysson Muotri |
categoria Espiral
“O autismo é, para as doenças neurológicas, o mesmo que a África
para os assuntos sociais”, definiu o jornalista Caryn James, em
declaração publicada no “New York Times”, em 2007. Com a frase, James
buscou enfatizar o emergente reconhecimento público sobre o autismo
durante a década passada. Movimentos emergentes pro-África acabaram por
polarizar opiniões dos envolvidos, causando certa confusão na percepção
pública sobre o assunto. Afinal como ajudar a África? O mesmo acontece
com o autismo hoje em dia.
Parte da polarização de opiniões sobre o autismo está relacionada com
seu caráter heterogêneo: chamamos de autista um garoto de seis anos de
idade que não fala, um jovem de 20 anos que estuda computação e tem
“tiques estranhos” e um homem de 40 anos que segue uma rotina religiosa e
não tem interesse na vida social. “Autismos” seria a melhor definição
para esse espectro de comportamentos sociais. Não existe um autismo
típico, cada caso tem sua própria natureza. A outra contribuição da
polarização vem dos profissionais de saúde. Pessoas com autismo são
vistas sob óticas diferentes dependendo do profissional – seja pediatra,
neurologista, psiquiatra, terapeuta comportamental, dentista,
psicólogo, fonoaudiólogo ou tantos outros que se relacionam com o
autista.
É
a velha história dos cegos e do elefante, em que cada um apalpa uma
parte do bicho e acredita estar diante de um objeto diferente. Cada um
tem uma perspectiva diferente da condição autista, com opiniões fortes
de como o autismo deve ser encarado e tratado. Outros ignoram
completamente o problema, buscam aceitação, levantando a bandeira da
diversidade, rejeitando opções de tratamento e cura. É óbvio que isso
tudo deixa os familiares confusos e pulveriza a força politica
pró-autista.
Pois bem, no espírito da conciliação, de encontrar o que é comum e
válido entre as diversas tribos pró-autistas, proponho quatro
perspectivas de comunidades interessadas em autismo que se
especializaram tanto na forma como falam sobre o autismo que se tornaram
reinos ou feudos isolados e distintos. Cada reino tem suas verdades,
mas todos falham na tentativa de entender ou mesmo reconhecer que suas
verdades não são aceitas fora de suas fronteiras.
Primeiro Reino: o autismo como doença.
A condição autista foi descrita pela primeira vez pelo médico Leo
Kanner em 1943. Desde então, a pesquisa médica tem sido focada encarando
o autismo como se fosse uma doença. Nesse reino encontram-se médicos,
pesquisadores, familiares e pacientes. Todos veem o autismo como uma
doença do cérebro que pode ser tratada com medicamentos. Investigam a
melhoria do diagnóstico, intervenções e a cura como objetivo final.
Teorias médicas evoluíram da mãe-geladeira para formas complexas da
neurogenética. Buscam-se marcadores moleculares da doença e novas
drogas. Ao contrário dos que veem o autismo como uma deficiência,
buscando melhores serviços e suporte, esse reino foca na lógica
puramente científica para justamente reduzir o número de serviços e
suporte dado ao autista. Querem cortar o mal pela raiz.
Segundo Reino: o autismo como identidade.
Nesse reino, os integrantes substituem a classificação de autismo como
doença por uma questão de diversidade – ou mesmo de identidade. Esses,
juntos com as comunidades de deficientes, veem o autismo como sendo
apenas mais uma entre milhares de variações cognitivas da humanidade,
com necessidade de aceitação, não de cura. Pessoas com autismo leve que
podem viver de forma independente, mas que não se sentem totalmente
acolhidas socialmente, fazem parte desse grupo. Em vez de buscarem
formas de se tornarem “normais”, focam na inclusão e aceitação social.
Exigem reconhecimento de que o autismo é uma forma de pensar diferente,
que pode produzir soluções inovadoras para problemas difíceis. Muitos
veem os resultados genéticos como uma forma de eugenia, não acreditam em
explicações de causalidade e acham que tratamentos são uma forma
compulsória de conformismo social. Como as comunidades de deficientes,
membros desse reino buscam apoio da sociedade, melhorias educacionais,
serviços ocupacionais e direitos cívicos.
Terceiro Reino: o autismo como lesão. Talvez
um dos argumentos mais acalorados sobre o autismo seja o papel da
vacina como causadora de uma lesão levando ao autismo. Membros dessa
comunidade são pais que observaram regressões de desenvolvimento de suas
crianças após vacinação. Mesmo frente a fortes evidências
epidemiológicas de que vacinas não causam autismo, defensores dessa
teoria sugerem que esses estudos estejam mascarando casos raros que
foram causados por vacinas. Ao contrário do grupo anterior, os pacientes
autistas nesse caso são afetados de formas severas, não verbais, com
disfunções imunológicas, gastrointestinais e ataques epiléticos.
Familiares desse grupo, sentindo que a ciência e medicina ainda não
geraram medicamentos eficazes, buscam alternativas como dietas
específicas e desintoxicação, entre outras. A grande distinção desse
grupo é que acreditam o autismo fora causado por uma determinada lesão
cerebral, causada por algum episodio específico na historia de vida do
individuo. Portanto, levantam a bandeira da prevenção, reconhecendo que
ao descobrir a causa poderíamos frear a prevalência do autismo.
Quarto Reino: o autismo como modelo. Da
mesma forma que cientistas usam a cegueira para entender o sistema
visual, membros desse grupo buscam no autismo a oportunidade de entender
o cérebro social. Esse grupo é composto primordialmente por
neurocientistas interessados em compreender o comportamento social
humano, usando ferramentas como neuroimagem e neuroanatomia em tecidos
cerebrais. O objetivo é mapear o cérebro para encontrar vias nervosas
que processam informações socais específicas, tais como reconhecimento
de faces, postura em grupo e teoria da mente. Esses cientistas apostam
em modelos animais ou estudos de ressonância magnética do cérebro humano
como instrumentos importantes para se ganhar insights sobre a natureza
humana, sem necessariamente se preocupar com a causa ou cura do autismo.
Reconheço que esses quatro reinos não necessariamente representam
todo o universo do espectro autista. No entanto, descrevem de forma
ampla perspectivas distintas que hoje em dia dividem opiniões sobre o
autismo. Esses feudos criaram estruturas super organizadas como
sociedades profissionais, ONGs ou redes sociais, para se fortificarem.
Infelizmente essa atitude serviu também para criar barreiras entre si,
dificultando interações construtivas e trocas de idéias entre seus
membros menos extremistas. Assim, podemos entender as críticas que
sofrem os geneticistas, que veem o autismo como doença e buscam
diagnóstico pré-natal, que seriam agentes abortivos dos autistas da
próxima geração.
Mas quem afinal está certo? Da mesma forma que ainda não sabemos qual
a melhor politica para ajudar a África, não existe uma resposta clara
para o autismo. É provável que todos os cegos estejam certos
parcialmente. O importante é notar que cada um dos reinos autistas tem
oportunidades de oferecer algo de construtivo. Precisamos tanto de
melhores diagnósticos e tratamentos, como melhores serviços, estratégias
de prevenção e um entendimento mais apurado do cérebro social humano.
Acredito que quanto mais os membros desses grupos se mantiverem
isolados, pior será para o autismo. Acho que deveríamos buscar o oposto,
abrindo a fronteira desses reinos e favorecendo a fertilização cruzadas
de ideias. Essa atitude pode mostrar o que existe de comum entre esses
reinos. Por exemplo, a luta por melhores serviços profissionais que
atendam a demanda autista. Outro exemplo seria a de criar um centro de
excelência que testasse sem bias idéias vindas das diversas áreas.
Propus algo assim para o Brasil recentemente
e fiquei pasmo com a recepção positiva de pessoas com opiniões bem
diferentes sobre o autismo o que sugere que a proposta mereça ser
considerada.
Com o crescente número de crianças autistas tornando-se adultos com
autismo, a situação começa ficar crítica e requer ação imediata. Penso
que nada de muito positivo vá acontecer se cada grupo insistir na sua
própria visão. Será uma pena olharmos do futuro para o que acontece hoje
e concluirmos que poderíamos ter lutado juntos por algo transformador,
buscando cooperação ao invés de conflito. Acho é possível unirmos forças
para atingir metas a curto prazo, como melhores escolas para os
autistas, e também soluções a longo prazo. Dessa forma teremos um mundo
melhor para crianças e adultos autistas.
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