quarta-feira, 23 de abril de 2014

O glúten e o autismo: Entrevista com Dra. Geórgia Meneses Fonseca

Recentemente, um tema vem sendo amplamente comentado e debatido no meio científico: as possíveis relações entre o consumo de glúten e o autismo em crianças. Para entender melhor esta complexa questão, a Schär conversou com uma das maiores especialistas no Brasil sobre o assunto. Mãe de uma menina autista, a doutora Geórgia Meneses Fonseca é pediatra com ampla experiência em desenvolvimento infantil, puericultura, homeopatia e saúde mental, além de pesquisadora em autismo da Federação Brasileira de Homeopatia, da qual é membro diretora. Confira a seguir a entrevista que ela gentilmente nos cedeu, por e-mail.

SCHÄR: Já existe comprovação científica sobre as relações entre doença celíaca e autismo? O que é possível afirmar a este respeito?

Dr. GEORGIA FONSECA: Há vários anos, nós que trabalhamos no dia a dia com os pacientes com autismo, e principalmente os pais e cuidadores destas crianças, temos observado que os sintomas gastrointestinais são uma característica comum em todas elas. Esta sintomatologia frequente chamou a atenção de vários pesquisadores para uma possível associação com a doença celíaca ou sensibilidade ao glúten nestas crianças. Os estudos sobre a resposta imune ao glúten no autismo e sua associação com doença celíaca apresentavam-se inconsistentes, no entanto alguns trabalhos recentes vêm respondendo a estes questionamentos. Novos estudos demonstraram que as crianças com autismo têm níveis significativamente mais elevados de anticorpos IgG para gliadina em comparação com os indivíduos saudáveis.(1) A resposta de anticorpos IgG anti-gliadina também se mostrou significativamente maior nas crianças autistas com sintomas gastrointestinais em comparação com aquelas que não apresentavam nenhum sintoma deste tipo. Isto comprovou que as crianças autistas podem sim apresentar aumento da reatividade imunológica de glúten. O mecanismo parece ser distinto da doença celíaca. O aumento da resposta de anticorpos anti-gliadina e sua associação com sintomas gastrointestinais aponta para um potencial mecanismo que envolve alterações de permeabilidade intestinal e/ ou imunológica em crianças afetadas.

Uma patologia que permaneceu desconsiderada por muito tempo, apesar de ter sido descrita originalmente em 1980, é a Sensibilidade Não Celíaca ao Glúten (SNCG) e que agora vem recebendo atenção devido aos estudos epidemiológicos recentes que associam a presença da SNCG em indivíduos com Síndrome do Intestino Irritável, Doenças Inflamatórias Intestinais e Distúrbios Neuropsiquiátricos, entre eles o Autismo e a Esquizofrenia. A Sensibilidade Não Celíaca ao Glúten, ou SNCG se caracteriza basicamente pela presença de sintomatologia intestinal e extra-intestinal relacionados à ingestão de alimentos contendo glúten, em indivíduos que não são afetados pela Doença celíaca ou pela Alergia ao Trigo.(2) E realmente temos visto em vários pacientes autistas a falta de marcadores para a DC presentes mas a resposta clara à retirada da proteína com alívio dos sintomas gastrointestinais e melhoria do quadro autístico.

Outro ponto recente e interessante para estudo, não só em relação a DC como para o Autismo, é a inter-relação cada vez mais evidente entre saúde x doença x microbioma isto é, a relação entre a população bacteriana que carregamos como “amigas” e que tomam importante papel no nosso metabolismo. Vários estudos demonstraram uma alteração na microbiota e doenças intestinais inflamatórias por exemplo. Nos casos de autismo, esta alteração, comumente chamada de disbiose, e seu papel no desenvolvimento dos sintomas intestinais e digestivos sempre foi amplamente debatida. De maneira fascinante agora em 2014 foram apresentadas pesquisas que demonstram que algumas bactérias têm potencial capacidade de ajuda na metabolização e quebra dos peptídeos do glúten em celíacos, e que sua ação começa já desde a cavidade oral (3,4,5). Alterações em alguns dos mesmos gêneros de bactérias, como Firmicutes, também foram observadas em crianças com autismo.(6)

SCHÄR: Por que uma criança autista tem mais problemas de refluxo, constipação e diarréia, por exemplo?

GF: A gênese destes sintomas parece resultar de um círculo vicioso resultante de agressão à mucosa gastrointestinal causando a permeabilidade intestinal aumentada, que será a provocadora da ativação imune gerando inflamação crônica local. E quais seriam os agentes apontados como agressores? Várias frentes de estudo apontam para o uso frequente ou precoce de antibióticos; uma dieta rica em carboidratos e açúcares ou alimentos infantis processados; o desmame precoce; a presença de alterações das respostas imunes primárias pelas vacinações; o uso excessivo de alimentos alergênicos como leite de vaca ou ovos; a exposição a toxinas, metais, vírus, parasitas; a diminuição da atividade de dissacaridases e outras enzimas que são capazes de digerir alimentos como os açucares e proteínas; a diminuição de imunoglobulinas protetoras do trato gastrointestinal como a IGA secretória e o crescimento de bactérias super-resistentes e fungos que são os causadores da disbiose. Todos estes agentes atuando como gatilhos sobre a predisposição genética subjacente.

SCHÄR: É verdade que a doença celíaca é mais frequente em autistas? Por que isso ocorre?

GF: Não há uma relação direta até agora comprovada nesta relação. Como foi recentemente demonstrado num trabalho realizado na Suécia no ano passado, relacionando 26995 pacientes biopsiados para Doença Celíaca e o diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo.(7) Mas a presença de anticorpos positivos contra o glúten é encontrada com mais frequência nestes pacientes (2, 7)

SCHÄR: Há pesquisadores que defendem a tese de que a má absorção dos nutrientes decorrente da doença celíaca acarreta em uma deficiência de neurotransmissores, fazendo com que estas pessoas apresentem comportamentos de autistas. Essa informação procede?

GF: Não exatamente. A DC tem sido associada a desordens neurológicas e psiquiátricas, notadamente com a ataxia cerebelar, neuropatia periférica, epilepsia, cefaléias, demência e depressão. Recentemente, a produção de alguns outros anticorpos têm sido relacionada com a sensibilidade ao glúten e às complicações neurológicas decorrentes, incluindo anticorpos anti-gangliosideos e os anti-GAD (Acido glutâmico descarboxilase). A enzima ácido glutâmico descarboxilase é relacionada à produção de ácido gama aminobutírico (GABA), que é um importante neurotransmissor regulatório no sistema nervoso central. Pelo menos 60% dos pacientes com anticorpos anti-gliadina presentes apresentam também anticorpos anti-GAD.(8)

A sensibilidade ao glúten também tem sido relacionada à diminuição da produção de serotonina. Um trabalho demonstrou que adolescentes celíacos que apresentavam depressão e outras alterações de comportamento tinham baixos níveis de triptofano livre, o qual é essencial para a produção da serotonina.(9)

Relatos sobre a relação entre Esquizofrenia e Doença Celíaca já contam 40 anos. A principal teoria entre a relação da absorção dos peptídeos do glúten, denominados gliadomorfinas, e comportamentos autistas tiveram seu início com estudos de comportamento animal desde a década de 60. A proteína do trigo mal digerida gera um pequeno fragmento proteico denominado peptídeo, que possui a capacidade de ligar-se aos receptores opióides cerebrais e manifestar sintomas semelhantes ao da intoxicação pelo ópio e seus derivados.

SCHÄR: Fala-se muito na eliminação de glúten e caseína (proteína do leite) da dieta de crianças autistas. Isso é realmente uma medida eficaz? Por que motivos? Uma criança pode reverter o autismo apenas por meio de uma dieta sem glúten e lactose, por exemplo? (Casos como este são muito raros?)

GF: A restrição de glúten e caseína da dieta de pacientes com Transtorno do Espectro do Autismo tem obtido grande aderência e aprovação de pais e cuidadores que observam a melhoria dos sintomas autísticos destes pacientes. Os estudos clínicos realizados com a dieta livre de glúten e de caseína nestas crianças demonstraram uma melhora no nível cognitivo não verbal, melhora na linguagem, diminuição dos problemas motores, diminuição do alheamento, aumento das habilidades de comunicação e de contato social e diminuição do comportamento estereotipado e agressivo.( 10, 11, 12, 13). Um dos melhores trabalhos sobre isto foi um estudo randomizado durante 24 meses de aplicação da dieta feito em 2010 por pesquisadores britânicos e escandinavos em 74 crianças com autismo de 4 a 10 anos avaliadas por diversas escalas de avaliação para comportamento social e desempenho cognitivo, que revelou melhora significativa nos escores obtidos no grupo em dieta livre de glúten e de caseína.(14)

SCHÄR: Cortando o glúten da alimentação de uma criança, é preciso recorrer a outras proteínas substitutivas? Quais?

GF: Toda restrição dietética em crianças deve ser acompanhada e orientada por profissional especializado. A retirada do glúten em si não trará muitos problemas, pois as outras fontes proteicas são todas liberadas. A retirada da caseína implica em atenção para os níveis de cálcio e manutenção do status proteico para garantirmos o crescimento e desenvolvimento adequados.

Referências:

(1) Markers of Celiac Disease and Gluten Sensitivity in Children with Autism. – Lau NM, Green PH, Taylor AK, Hellberg D, Ajamian M, Tan CZ, Kosofsky BE, Higgins JJ, Rajadhyaksha AM, Alaedini A.
(2) Non-Celiac Gluten sensitivity: the new frontier of gluten related disorders.
Catassi C, Bai JC, Bonaz B, Bouma G, Calabrò A, Carroccio A, Castillejo G, Ciacci C, Cristofori F, Dolinsek J, Francavilla R, Elli L, Green P, Holtmeier W, Koehler P, Koletzko S, Meinhold C, Sanders D, Schumann M, Schuppan D, Ullrich R, Vécsei A, Volta U, Zevallos V, Sapone A, Fasano A.
(3) Diversity of the cultivable human gut microbiome involved in gluten metabolism: Isolation of microorganisms with potential interest for coeliac disease.
Caminero A, Herrán AR, Nistal E, Pérez-Andrés J, Vaquero L, Vivas S, de Morales JM, Albillos SM, Casqueiro J.
(4) The cultivable human oral gluten-degrading microbiome and its potential implications in coeliac disease and gluten sensitivity.
Fernandez-Feo M, Wei G, Blumenkranz G, Dewhirst FE, Schuppan D, Oppenheim FG, Helmerhorst EJ.
(5) Discovery of a novel and rich source of gluten-degrading microbial enzymes in the oral cavity.
Helmerhorst EJ, Zamakhchari M, Schuppan D, Oppenheim FG.
(6) Fecal microbiota and metabolome of children with autism and pervasive developmental disorder not otherwise specified.
De Angelis M, Piccolo M, Vannini L, Siragusa S, De Giacomo A, Serrazzanetti DI, Cristofori F, Guerzoni ME, Gobbetti M, Francavilla R.
(7) Markers of Celiac Disease and Gluten Sensitivity in Children with Autism.
Lau NM, Green PH, Taylor AK, Hellberg D, Ajamian M, Tan CZ, Kosofsky BE, Higgins JJ, Rajadhyaksha AM, Alaedini A.
(8) Volta U, De Giorgio R, Granito A, Stanghellini V, Barbara G, Avoni P, et al. Anti-ganglioside antibodies in coeliac disease with neurological disorders. Digestive and Liver Diseases. 2006; 38:183–187.
(9) Pynnonen PA, Isometsa ET, Veradale MA, Chaconne SA, Sipila I, Savilahti E, et al. Gluten-free diet may alleviate depressive and behavioural symptoms in adolescents with coeliac disease: A prospective follow-up case-series study. BMC Psychiatry. 2005; 5:14. [PubMed: 15774013]
(10) Knivsberg AM, Reichelt KL, Hoien T, Nodland M Nutr Neurosci 2002 Sep;5(4):251-61. (90/95/2001)
(11) Lucarelli, S., Frediani, T., Zingoni, A.M., Ferruzzi, F.,Giardini, O., Quintieri, F., Barbato, M., D’Eufemia, P., Cardi,E. Panminerva Med., 1995 Sep; 37(3): 137-41.
(12) Reichelt, w. H.. knivsberg, A. M., Nodland, M., stensrud, M., Reichelt, K. L. Developmental Brain Dysfunction .1997 (10),44-55.
(13) Whiteley, P., Rodgers, J., Savery, D., Shattock, P. The Autism Research Unit (ed) 1997. Living and Learning with Autism. Sunderland University Press pp 189-197.
(14) The ScanBrit randomised, controlled, single-blind study of a gluten- and casein-free dietary intervention for children with autism spectrum disorders.
Whiteley P, Haracopos D, Knivsberg AM, Reichelt KL, Parlar S, Jacobsen J, Seim A, Pedersen L, Schondel M, Shattock P.


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