“Em alguns instantes sou pequenina e também gigante. Vem, cara, se declara, o mundo é portátil pra quem não tem nada a esconder, olha minha cara. É só mistério, não tem segredo. Vem cá, não tenha medo”. O trecho entre aspas foi retirado de Infinito Particular, canção escrita em parceria entre Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. Os compositores tem em comum a sociabilidade, são comunicativos e livres de diagnósticos disfuncionais, mas a letra poderia muito bem retratar a percepção de mundo de um indivíduo com transtorno do espectro do autismo (TEA) – desordem que compromete o desenvolvimento e afeta cada paciente de forma singular.
Para Laísa Acioly, mãe de Lavínia, de 07 anos, foi visível que sua criança era diferente das demais. “Já bebê, seus olhos nunca cruzavam com o olhar dos amigos e parentes que a visitavam. Quando entrou na escola, percebi que não se reunia aos coleguinhas na rodinha para ouvir as histórias quando a professora chamava”, lembra. Por atuar na área da saúde, desconfiou que a evolução da filha não seguia correspondente ao considerado natural e procurou auxílio com diversos profissionais, sem muito sucesso no diagnóstico até aproximadamente seis meses depois.
Lavínia estava com a idade de 3 anos e 4 meses, e uma resposta: era uma criança com espectro autista. Os próximos passos, enxergou a genitora, incluíam conscientização e conhecimento das limitações conexas ao resultado e meios para melhora da qualidade de vida.
Qualificar alguém com TEA ainda é complicado, pois inexistem exames específicos para resultar num diagnóstico preciso. A psicóloga do Hapvida Saúde, Lívia Vieira, comenta que é comum haver falhas dos profissionais na conclusão de uma análise exata. “Existem crianças que são falsamente classificadas com autismo, pois apresentam um comportamento mais reservado, ficam muito tempo na televisão ou apegados aos estudos, e até pela falta da presença assídua de adultos”, afirma.
O inverso também é possível. Há casos em que a leigalidade dos pais confunde a falta de interação social e as demais características com timidez, retardando as oportunidades de acompanhamento evolutivo.
Embora as características sejam unânimes, seu desenvolvimento varia de quadro para quadro. “Frieza sentimental, dificuldade no contato visual e na comunicação, principalmente pela fala, solidão voluntária e resistência a comandos verbais são alguns dos sinais que levam a identificar o distúrbio”, descreve Lívia Vieira. A manifestação desses indícios acontece ainda nos primeiros meses de vida.
Para a afirmação de pessoa com espectro de autismo, ampara-se à comparação ao disposto no Dicionário da Saúde Mental (DSM), produzido pela Associação Americana de Psiquiatria. A última revisão, publicada em maio e atualizada após 13 anos, que resultou na quinta edição do documento, sofreu mudanças quanto às definições estabelecidas ao transtorno.
O DSM-5 engloba o autismo clássico, o transtorno de Asperger, o transtorno invasivo do desenvolvimento e o transtorno desintegrativo da infância numa única condição – transtorno do espectro do autismo –, antes diagnosticadas reservadamente. Quanto à gravidade da desordem, nenhuma citação é feita à listagem popularmente utilizada, que classifica como grau “leve”, “moderado” ou “severo”, desconsiderando o caráter oficial dessa divisão. Mas entende-se, em consenso, por níveis 1, 2 ou 3, de acordo com as limitações e possibilidades de cada.
Mais comum que se imagina e por vezes despercebido, o TEA acomete uma em cada 110 pessoas e tem caráter congênito, ou seja, é adquirido pelo bebê ainda na gestação. Os dados são reciclados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês), dos Estados Unidos, já que ainda é impossível traçar um panorama em semelhantes proporções no Brasil. Um estudo publicado em 2010 estima, no entanto, com base no Censo de 2000, que meio milhão de brasileiros eram portadores à época. Em números atuais, a estimativa é que tenha quadruplicado, embora a proporção permaneça 4 para 1 – incidência no gênero masculino sobre o feminino.
Toda construção psicológica do paciente sofre mudanças, refletidas em suas ações perante a sociedade, independente da idade. É comum que toda criança desponte uma personalidade limpa, sem máscaras. Na fase adulta, podemos fingir ou manipular, o que na psicologia é conhecido como persona. Esta faculdade o autista não possui.
Com Lavínia, Laísa passou por experiências que comprovam a transparência e espontaneidade do comportamento. Ela recorda um acontecimento em que todos os funcionários e clientes de um centro de compras pararam para observar uma agitação que direcionava à porta de entrada. “Ela não compreende que cada escada rolante tem um sentido, e quis descer na mesma em que subiu. Como repreendi a ação, ela começou a gritar. São momentos de birra que para quem convive se tornam corriqueiros, mas quem está de fora, estranha, principalmente por desconhecer o atraso que a criança possui”.
O modo de extravasar e agir também são afetadas. O autista não aguenta esperar muito tempo numa fila nem decidir qual roupa quer vestir ou dizer o que está com vontade de comer. Até as brincadeiras ocorrem de forma diferente. “Se um menino brincar com carrinhos, não vai ser forçando seu rolamento no piso ou disputando qual possui a maior velocidade, mas sim empilhando-os ou ordenando-os”, exemplifica a psicóloga do Hapvida Saúde.
Esta inocência leva a atitudes que podem ser prejudiciais, como brincar com terra, expondo-se a germes e doenças, e até repetitivos atos de introduzir o dedo no nariz e em seguida na boca. A orientação de Lívia é advertir. “Tudo que faz mal deve ser evitado. O responsável não pode consentir com essas práticas, mas a abordagem é parte importante para obter resultados satisfatórios. Gritar ou agredir fisicamente não é o método correto de instrução, em nenhuma situação”.
Com acompanhamento contínuo e trabalhando da maneira adequada, a reinserção na sociedade passa a ser uma etapa conclusiva. Não a final. “TEA não tem cura, portanto, a estrada é longa e permanente. Entretanto, a colaboração dos que o cercam deve começar com o entendimento que uma pessoa com espectro autista é, antes do ‘espectro autista’, uma pessoa”, finaliza Lívia Vieira.
Como o Brasil enxerga o espectro do autismo?
Em dezembro de 2012 foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff a Lei nº 12.764, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, considerando “com deficiência, para todos os efeitos legais” qualquer cidadão brasileiro com espectro autista. Assim, a lista de benefícios estenderam-se principalmente nos âmbitos da saúde, educação e assistência social, fornecendo suporte para que as famílias garantam melhores oportunidades ao seu ente.
Dentre as principais mudanças estão a garantia de que escolas regulares não possam negar matrícula a um espectro autista, sob penalizações que vão de multa até afastamento de cargo; estímulo a desenvolvimento de carreira profissional em empresas com quadro de funcionários superior a 100; acesso a medicamentos, nutrientes e atendimento multiprofissional, incluindo admissão irrefragável em planos de saúde; e capacitação de mão-de-obra especializada, assim como dos pais e responsáveis.
Para Maryse Suplino, psicopedagoga e fundadora da filial brasileira do Instituto Ann Sullivan, referencial no atendimento a pessoas nessa condição, a aprovação dessa Lei foi uma vitória. “Os Direitos deles estão fortalecidos. Um dos Artigos diz que compete ao poder público a responsabilidade por tornar públicas informações relacionadas ao transtorno, e esse é um importante benefício para eles: o entendimento da sociedade”, coloca.
Na ficção
Nos últimos meses, o tema passou a ganhar destaque na mídia após a novela “Amor à vida” apresentar uma personagem, Linda, interpretada pela atriz Bruna Linzmeyer, com as características do transtorno.
Maryse Suplino conta que ela pode representar sim algumas pessoas com TEA, mas não a totalidade. “Cada quadro é único. Dentro do imaginário social, e realidade só é retratada se tiver todas as características, mas eles podem ser completamente diferentes entre eles. Enquanto uns apresentam fragilidade verbal e desapego a rotina, outros podem desenvolver uma melhor oratória e serem dependentes das ações repetitivas. E tem quem some as disfunções”, afirma.
Questionada quanto ao relacionamento que o autor Walcyr Carrasco apostou para a personagem, e a consequente oposição da família, a doutora comentou que é uma reação corriqueira.
“Existe a dificuldade de aceitar a possibilidade, esse é o fato. Mas uma pessoa com espectro do autismo em sua fase adulta ou até na adolescência pode vir a participar de um relacionamento afetivo, assim como qualquer pessoa na sua idade. E é preciso aceitar e incentivar isso, do mesmo modo que a imersão no mercado de trabalho, liberdade para percorrer a cidade utilizando transportes públicos ou qualquer outro papel que ela demonstre aptidão e vontade de exercer”, orienta.
O drama de linda conquistou o Brasil, mas ela não é a primeira a retratar o assunto na ficção. Em “Rain Man” (1988), Dustin Hoffman garantiu sua segunda estatueta do Oscar ao representar um autista com habilidades atípicas de cálculo e memória eidética (popularmente conhecida como memória fotográfica). Os sintomas também são observados em Sheldon Cooper, um dos protagonistas de “The Big Bang Theory”, e em Max Braverman, de “Parenthood”, ambos seriados com alguns das audiências mais expressivas nos Estados Unidos.
Nem o cinema de Bollywood ficou de fora, utilizando como cenário o drama do 11 de setembro, onde o indiano com autismo Rizwan Khan, vivido Shah Rukh Khan, é confundido com um terrorista e preso.
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