quinta-feira, 27 de março de 2014

Genômica contra o estigma


por Alysson Muotri

A capacidade de sequenciar o genoma humano tem evoluído exponencialmente nos últimos anos, diminuindo os custos, reduzindo o tempo e tornando essa ferramenta acessível clinicamente. Na minha visão, o maior impacto dessa tecnologia será no diagnóstico de doenças neurológicas raras. Ou mesmo de doenças não tão raras assim – depende do ponto de vista.


O autismo, por exemplo, afeta cerca de 1% da população mundial e pode não ser considerada uma síndrome rara para alguns. Por uma outra perspectiva, pode-se considerar que cada paciente é único, cada um carregando alterações genéticas privadas, ou mesmo que existam centenas de tipos de autismos. Todos raros, mas com sintomas clínicos em comum, mascarando a complexidade dessa condição. Por isso mesmo, existem iniciativas que buscam sequenciar o genoma de milhares de autistas, buscando pistas genéticas sobre a identidade dessa(s) doenças. No Brasil, o projeto Fada do Dente tem esse como um dos objetivos para pacientes autistas. O mesmo racional se aplica para esquizofrenia e outras doenças mentais. Essas iniciativas de sequenciamento vão revelar o quanto raro são as diversas formas de doenças mentais que existem. Clinicamente, podem levar a um tratamento personalizado, diminuindo o tempo entre diagnostico e cura.
Infelizmente, as doenças mentais ainda sofrem com o estigma social. Existem sociedades humanas que veem doenças mentais como um castigo divino ou tem vergonha da linhagem genética e escondem os pacientes. Outras sociedades são mais abertas, reconhecendo a base biológica e investindo em ciência, como forma de encontrar soluções concretas para tratamentos mais efetivos e cura. Ora, isso já foi feito para doenças infecciosas, do coração, câncer, pulmão e outros órgãos. Já não se morre mais de alguns cânceres e a sobrevivência de pacientes com AIDS é relativamente alta. O mesmo avanço não é observado para as doenças neurológicas. Acho que parte da culpa vem desse estigma.
Gleen e a irmã Jessie Close
Nos EUA, o estigma é combatido ferozmente por pessoas famosas, celebridades, que em geral possuem algum membro da família que é afetado. É o caso da atriz Glenn Close, co-fundadora da campanha BringChange2Mind, cujo objetivo é reduzir a atitude e percepção negativa daqueles portadores de doenças mentais. Gleen tem uma irmã, Jessie Close, e um neto, Calen Pick, com doenças mentais. Jessie foi diagnosticada com síndrome bipolar e Calen com esquizofrenia. Recentemente, os dois foram imortalizados numa publicação cientifica mostrando como a genômica conseguiu literalmente curá-los.
Jessie e Calen tiveram seus genomas sequenciados e o time de pesquisa descobriu que ambos tinham uma variação genética rara, que como consequência, gerava cópias extras do gene que codifica para uma enzima que degrada glicina. A glicina é um modulador do receptor de dopamina no cérebro e já havia sido implicada em surtos psicóticos. Com cópias extras da enzima, Jesse e Calen acabavam por ter menos glicina no cérebro, o que levava a uma dramática deficiência na atividade do receptor dopaminérgico. Quando Jesse e Calen incorporaram glicina na dieta, a resposta foi como dar insulina para um diabético – os problemas psiquiátricos dos dois praticamente sumiram (Stessman e colegas, Cell 2014).
É interessante notar que a manipulação dos receptores de dopamina por glicina ou outras drogas já havia sido previamente testada clinicamente em pacientes com esquizofrenia, mas falharam ao demonstrar eficácia. O problema pode ser que nesses ensaios clínicos foram incluídos pacientes com doenças ou síndromes diferentes, todos classificados com base em diagnósticos meramente comportamentais ou clínicos, como “esquizofrênicos”. É o mesmo que dar antibióticos para todos que tem febre e descobrir que não funciona porque metade dos febris testados tem infecção viral e não bacteriana.
Outra curiosidade, Jessie e Calen foram diagnosticados de forma diferente (um bipolar, outro esquizofrênico) mas ambos tem a mesma mutação genética e se beneficiaram do mesmo tratamento. A história deles mostra muito bem porque estamos patinando tanto para descobrir tratamentos efetivos para doenças neurológicas que são diagnosticadas clinicamente apenas. A entrada da genômica na clínica é imprescindível. No Brasil, esse tipo de aconselhamento está restrito a médicos com conhecimento clinico apenas, excluindo biólogos moleculares e outros profissionais especializados em genética. Ao meu ver, isso é um erro grave que precisa ser consertado o quanto antes, pois a demanda, assim como nos EUA, será grande por profissionais qualificados.
Exemplos como o de Jessie e Calen ainda são raros. Infelizmente, na maior parte dos casos, a interpretação genética é complicada. Isso acontece porque desconhecemos os mecanismos de ação da maior parte dos genes e regiões regulatórias do genoma humano. Porém, isso não pode ser justificativa para que o sequenciamento genético não seja feito. A ciência avança diariamente e se hoje não existe tratamento, amanhã ou depois algum cientista poderá publicar algo relevante clinicamente. Vamos participar de um futuro próximo no qual todos terão seus genomas sequenciados, a medicina personalizada veio pra ficar.

A influencia da atriz Glenn Close e a participação da sua família em projetos científicos nos lembra o quão importante é a parceria entre pesquisadores e pacientes para que os avanços se tornem realidade. Só assim vamos conseguir mudar a forma como diagnosticamos e tratamos doenças neurológicas, sejam raras ou não.

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