O Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP) é um dos destaques da edição especial sobre autismo da revista Psicologia, publicação da editora Mythos. A entidade colaborou com o artigo “O Autismo no Tratamento Psicanalítico”, escrito por Adela Stoppel de Gueller, Cláudia Mascarenhas, Juliana de Souza Moraes Mori e Maria Lúcia Amorim.
O autismo no tratamento psicanalítico
Desde os primeiros momentos de vida, o ser humano procura a interação, o contato e o afeto das pessoas do seu entorno. Esta é uma das características que não se estabelece nas pessoas que poderão vir a desenvolver um quadro de autismo, cuja principal dificuldade reside na relação com os outros, o que acarreta problemas emocionais, cognitivos e sociais. Nesta relação, compartilhar o prazer é um componente fundamental que a pessoa com autismo não consegue apresentar. Sucedem-se a isso dificuldades importantes na aquisição da linguagem, nos processos de simbolização, no brincar e na aquisição de hábitos que são substituídos por atividades de autoestimulação e estereotipias.
As descobertas da neurologia, da genética e da psiquiatria têm encontrado algumas correlações entre certas patologias orgânicas e quadros de autismo, mas não encontraram uma única causa que permita centrar o diagnóstico do autismo em exames laboratoriais, nem um tratamento que apresente apenas soluções medicamentosas. Frequentemente, o autismo também aparece relacionado a síndromes genéticas, deficiências sensoriais ou lesões neurológicas, por isso é importante considerar uma multiplicidade de fatores, orgânicos ou não, que podem estar envolvidos neste quadro.
Em função da complexidade de áreas e funções implicadas, a intervenção da Psicanálise no atendimento a pessoas que tiveram o diagnóstico de autismo é feito de modo interdisciplinar, juntamente com equipes de fonoaudiólogos, terapeutas educacionais, psicopedagogos e médicos, de modo a poder levar em consideração as aquisições instrumentais e a circulação social, escolar e cultural.
Nossa prática tem nos mostrado que reconhecer e valorizar, nas condições mais adversas, o espaço da subjetividade, enriquece e amplia as possiblidades de um sujeito. Por isso, a Psicanálise tem muito a contribuir neste campo, pensando e propondo formas de intervenção na constituição psíquica e no estabelecimento da relação com os outros.
Desde 1929, quando Melanie Klein ousou com o menino Dick a se aventurar nesta clínica, a Psicanálise vem pesquisando e inovando seus modos de intervenção, repensando como atuar com as crianças que não brincam e também de que modo empregar a palavra e a presença do analista. Hoje, psicanalistas de diferentes perspectivas concordam em que esta clínica requer uma participação mais ativa de parte do psicanalista, mas também muito cuidadosa, em função dessas crianças experimentarem o outro de um modo invasivo. Assim, é importante que o terapeuta não seja invasivo, mas é fundamental que esteja presente. Anne Alvarez define essa particular posição ativa com o conceito de reclaiming, que significa reivindicar, convocar, chamar de volta.
O psicanalista parte, em sua intervenção, de uma observação atenta ao modo singular que a pessoa com autismo se situa: o que chama seu interesse? Quais são suas preferências? Para onde dirige seu olhar? Que sons emite? Frente ao que avança e o que detém seu movimento?
Esses sinais serão o ponto de partida da intervenção psicanalítica por serem considerados aberturas para a subjetivação, portanto, abertura da bolha autística. O objetivo inicial será promover uma extensão do mundo a partir de pequenas janelas de contato.
Quando a intervenção se faz precocemente, isto é, antes que o quadro tenha se configurado de forma plena, é possível ter melhores resultados, que podem se manifestar em uma melhor disposição da pessoa ao contato, no surgimento de expressões de júbilo no brincar, numa solicitação de participação para atividades conjuntas, no surgimento de linguagem verbal e pronomes pessoais. Isto acontece porque a infância se caracteriza pela extrema plasticidade cerebral e relacional, ou seja, porque é um tempo que permite novas inscrições psíquicas, já que são possíveis, no relacionamento com outras pessoas, novas aquisições e novos arranjos. É por esse motivo que inúmeras experiências de tratamento psicanalítico têm evidenciado mudanças concretas em quadros de risco de autismo.
Os profissionais hoje vinculados ao Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública concordam com as premissas da Organização Mundial da Saúde, sustentadas pelo documento do Ministério da Saúde lançado em abril deste ano – Linha de Cuidado para a Atenção das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde/SUS –, que indica que o diagnóstico de autismo não deve ser fechado antes dos três anos de idade. Esse critério se justifica porque fechar um diagnóstico antes do tempo pode trazer prejuizos para a criança, fixando o que, em muitos casos, ainda não necessariamente está decidido.
Mesmo assim, a prática psicanalítica se utiliza de indicadores de detecção precoce de sinais de sofrimento psíquico. Tais indicadores permitem avaliar como está se estruturando a subjetividade de um bebê ou pequena criança, e intervir a tempo caso sejam identificadas dificuldades nesse processo. Desse modo, pode-se intervir precocemente sem que para isso se tome como referência (ou se espere) a confirmação de quadro patológico fechado. A infância é o momento de maior polimorfismo na vida, o que possibilita abertura a novos rumos, afirmação esta que está em concordância com as afirmações mais atuais da epigenética. Por esse motivo, a intervenção psicanalítica nos primeiros tempos de vida pode mudar a direção do que parecia traçado.
Quatro eixos são considerados centrais na intervenção psicanalítica com as crianças em risco e sofrimento psíquico:
– O brincar e a capacidade de fantasiar
– A estruturação do corpo e a imagem corporal
– A fala e o posicionamento na linguagem
– O reconhecimento das regras e da lei
Além disso, a intervenção psicanalítica considera fundamental o trabalho conjunto com os pais, já que são eles que têm um papel primordial na vida do filho e possuem um saber consciente e inconsciente sobre ele, decisivo na hora de intervir para tentar melhorar essas dificuldades. Suas preocupações, temores e ansiedades também requerem um lugar de acolhimento e reflexão por parte do psicanalista. Assim, também é fundamental poder trabalhar as possibilidades e as limitações que a situação comporta e dar lugar para que se possa falar das difíceis situações do cotidiano que se apresentam.
Os passos fundamentais no tratamento psicanalítico incluem:
- Reconhecer os automatismos para possibilitar uma extensão dos mesmos a outras áreas de interesse. O psicanalista busca aproximar-se das produções do paciente e introduz mudanças sutis na voz, nos gestos, no olhar, no movimento corporal e no endereçamento, até possibilitar uma abertura gradativa.
- Detectar e possibilitar aberturas de relacionamento procurando ativamente despertar e estender o interesse da criança em relação às outras pessoas. Um dos primeiros sinais de progresso é o surgimento do interesse conjunto do paciente e do psicanalista num mesmo objeto ou brincadeira. Evidencia-se desse modo um efeito do compartilhar, mecanismo fundamental para um esboço e constituição da subjetividade. Um sinal de avanço nessa linha se apresenta quando a criança percebe as sutis mudanças introduzidas pelo psicanalista numa brincadeira e demonstra prazer e interesse por elas, solicitando que sejam repetidas.
- Essas aberturas são o ponto de partida para a introdução de brincadeiras com o olhar, com a voz e com o corpo, por meio de pequenas músicas infantis, parlendas ou jogos de mímica facial. Um sorriso, uma emissão vocal diferente, ou um gesto de aproximação por parte da criança são indicadores de um avanço no contato.
- Os intervalos, as pequenas diferenças, a expectativa da criança e as mudanças de ritmos são indicadores da criação de diferenciações no espaço e no tempo, essenciais ao processo de simbolização.
- A participação dos pais em todo processo psicoterapêutico é fundamental, permitindo-lhes ganhar força para destravar o isolamento de seus filhos, escutar seu sofrimento e reencontrar possibilidades de contato e reconhecimento mútuo.
- Essas são matrizes que possibilitam a estruturação de pequenas cenas de jogo simbólico, como brincar de fazer comidinha, de dormir e acordar, de chegar e partir.
A Psicanálise considera que suprimir as estereotipias privilegiando os critérios adaptativos não é suficiente para que a subjetividade se constitua. É fundamental que a pessoa com autismo encontre sentido para as experiências de vida e que possa exprimir suas vontades de forma a compartilhá-las com os outros, ampliando os momentos de trocas sociais e suas áreas de interesse.
Nesse sentido, Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP) preocupa-se para que o cuidado da pessoa com autismo contemple seus direitos e realize tratamentos de forma não segregada.
Hoje, o movimento reúne mais de 400 profissionais no Brasil, ligados a cerca de 100 instituições – acadêmicas, órgãos psicanalíticos de diferentes filiações teóricas e organizações não governamentais – que atendem, estudam e produzem conhecimento científico sobre o tratamento interdisciplinar de orientação psicanalítica de pessoas com autismo.
Adela Stoppel de Gueller
Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professora do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da COGEAE-PUC/SP e do curso de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Atualmente, integra o Grupo Gestor do MPASP. adela@gueller.com.br
Cláudia Mascarenhas
Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela USP-SP, fundadora do Instituto Viva Infância, membro do Espaço Moebius de Psicanálise, Consultora do Ministério da Saúde sobre autismo e membro do MPASP.
claudia.mascarenhasfernandes@gmail.com
Juliana de Souza Moraes Mori
Fonoaudióloga. Mestre em Fonoaudiologia pela PUC-SP. Com aprimoramento em Fonoaudiologia nos Distúrbios Psiquiátricos da Infância pela FMUSP. Fonoaudióloga do CRIA – Centro de Referência da Infância e Adolescência/UNIFESP. Atualmente, integra o Grupo Gestor do MPASP. jsmmfono@gmail.com
Maria Lúcia Amorim
Psicanalista membro da SBPSP e da SBPRJ. Psicanalista de crianças e adolescentes da SBPSP. Filiada à International Psychonalytic Association– IPA. Mestre em Psicologia – Fundamentos Psicossociais do Desenvolvimento pela USM-SP. Integra o Grupo Gestor do MPASP. marialucia.g.amorim@gmail.com
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