Receber a notícia de que o filho é autista transforma
as suas perspectivas de presente e futuro, mas é a partir dessa mudança
que você pode apresentar um novo mundo para a criança. Conheça o dia a
dia de uma família em que uma das filhas gêmeas tem o distúrbio
Ana Paula Pontes • Fotos Raoni Maddalena
“Aqui
mora uma família feliz.” As palavras talhadas na plaquinha de madeira
que enfeita a porta do apartamento da pedagoga Luciana Nassif, 39 anos, e
do comerciante Marcos Antonio Cavichioli, 46, em São Paulo, antecipam o
clima que eu iria encontrar na casa dessa família, apesar da avalanche
de sentimentos que tomou a todos nos últimos anos. Com um sorriso no
rosto, um tererê ornando os longos cabelos lisos e castanhos, quem me
recebe é uma das gêmeas do casal, Isabela, 8 anos. Assim que entro, sou
convidada a conhecer sua irmã. No quarto, com a babá, Mariana se mostrou
indiferente com a minha chegada. Mesmo com a insistência da mãe para
que se virasse para mim, continuou com um olhar cabisbaixo. Mari Mari,
como é carinhosamente chamada, é autista.
Ela está
aprendendo agora a demonstrar e a receber carinho, por gestos. Mari Mari
não fala. Ela tem um grau severo do transtorno do espectro autista,
termo que os especialistas usam para se referir aos diversos graus que
envolvem o autismo. Fica mais fácil entender se comparamos a um dégradé,
desde cores muito escuras, em que se encontram os casos mais graves,
até as cores claras. Por isso cada criança tem um ritmo próprio de
desenvolvimento. Para Mari Mari, que estaria na parte escura deste
dégradé, é preciso ensinar o que parece tão corriqueiro. Há um ano, e
pela primeira vez, a menina abraçou a mãe – um dos pilares do
comportamento autista é a dificuldade de interação com o outro. É um
abraço “adaptado”. Ela aceita o carinho, mas não cruza as mãos por trás
das costas da pessoa. Em vários momentos da entrevista, ela corria, na
ponta dos pés (um comportamento que começou aos 5 anos) para o colo da
mãe, sorria, trazia o boneco predileto, gargalhava. O contato visual, o
beijo, que não é aquele estalo no rosto, mas uma encostadinha apenas,
demonstrações de interesse pela irmã e o sorriso presente no rosto eram
cenas apenas sonhadas pela família até pouco tempo.
A mãe
me conta, em tom de orgulho, as recentes conquistas da filha. Mari Mari
não se incomoda mais se uma criança chega perto dela no parquinho,
mesmo que prefira estar só, e ganhou autonomia para comer sozinha e
“pedir” o que tem vontade, como quando leva o litro de leite até a mãe
para que ela o esquente. “Pode parecer pouco, mas esse é um grande
avanço”, diz Luciana. Não, não é fácil ter um filho autista. Mas o
diagnóstico não é o fim, e sim um novo começo na vida de toda a família.
Onde tudo começa?
A
ciência não descobriu, até hoje, a causa da doença. O que os
especialistas concordam é a forte influência da genética na alteração do
funcionamento do cérebro do autista. Alguns genes – e muitos foram
identificados – podem ou ser herdados mutados dos pais, algo raro, ou
sofrer novas mutações durante a formação do embrião. Mas não para por
aí. Várias teorias são relacionadas a todo momento com o aparecimento do
transtorno, mas nem todas são referendadas pelos médicos e nada é
conclusivo. Alimentação, vacinação, infecções na gravidez e até
intercorrências no parto ou nos primeiros anos de vida integram essa
lista. As pesquisas relacionam até fertilização in vitro e prematuridade, como é o caso das gêmeas, que nasceram de 32 semanas.
Isabela
saiu da maternidade em cinco dias. A irmã, nos mais de três meses em
uma UTI neonatal, passou por uma cirurgia cardíaca e diversos exames,
inclusive para detectar a existência de alguma síndrome por ter nascido
com as orelhas mais baixas e os dedos levemente flexionados. Mari Mari,
segundo os médicos, tinha atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.
Mesmo
acompanhada por uma equipe multidisciplinar desde os seis meses, não
mostrava avanços. “Ela gostava de ficar sozinha na escola e, aos 2 anos,
teve a primeira convulsão (problema que afeta 25% dos autistas).” Aos
3, os atrasos ficaram evidentes e ela passou a balançar as mãos quando
ficava nervosa. “Quando questionei o neurologista que a acompanhava
sobre a possibilidade de autismo, ele disse que eu não sabia o que era
uma criança com o transtorno. Nunca vou me esquecer disso”, diz. A avó
materna das meninas, que desconfiava da existência de um problema maior,
mostrou a Luciana uma reportagem sobre autismo. Depois de ler, ela
agendou uma consulta com um dos especialistas entrevistados. Em 40
minutos e aos 4 anos e 7 meses, a família soube que Mari Mari era
autista.
Essa trajetória desgastante não é incomum. Como
não há um exame que detecte o transtorno, o diagnóstico é clínico, feito
com base no comportamento da criança. E pode levar muito tempo para
chegar a uma conclusão. “O ideal é descobrir o transtorno com cerca de 1
ano, quando os tratamentos dão resultados melhores”, diz Antonio Carlos
de Farias, neurologista infantil do Hospital Pequeno Príncipe (PR),
pesquisador e coautor do livro Transtornos Mentais em Crianças e Adolescentes: Mitos e Fatos
(Ed. Autores Paranaenses). Se identificado nessa fase, ou até os dois
anos, a chance de a criança falar é de 75%. “No Brasil, estima-se que
existam 1 milhão e meio de autistas, e menos de 5% recebem a assistência
adequada”, diz Estevão Vadasz, psiquiatra, que estuda o assunto desde
1978, coordenador do Programa dos Transtornos do Espectro Autista,
referência no país, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas
da USP. Segundo o Ministério da Saúde, uma a cada mil crianças é
autista no Brasil. Dados internacionais, porém, mostram que essa
incidência é de uma para cada 110.
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